Vira-se para o portão da quinta e a visão de uma colina bordejada por um lago e rematada em linhas modernas por um edifício que quase se funde nas linhas do terreno cativa-nos de imediato. Depois, já a pé, fazemos os últimos metros rampa acima e chegamos à entrada. Um relance em redor descobre mares de vinhedos em todas as direcções. Estamos na Herdade do Rocim, entre a Vidigueira e Cuba, distrito de Beja. Este é o berço de grandes vinhos. Um berço de ouro.
"Uma adega destas responsabiliza. A pior coisa que me podiam dizer era que a adega era melhor do que o vinho." Catarina Vieira, 34 anos, é a enóloga e coordenadora executiva deste projecto. Confessa que, quando um dia comunicou ao pai o desejo de ter uma vinha no Alentejo, estava a pensar "num hectare, qualquer coisa para poder fazer umas experiências". Mas o pai, José Ribeiro Vieira, um empresário abastado e com visão, decidiu que, se era para se fazer, fazia-se a sério.
A herdade, abandonada há dois anos devido à morte súbita do anterior proprietário, foi comprada em 2000 e, ao contrário do que seria expectável, começou-se por reestruturar os espaços físicos da propriedade. A seguir, já com a magnífica adega a pontuar a paisagem, as atenções viraram-se para a vinha. Hoje, quatro anos passados sobre a inauguração das infra-estruturas e o lançamento dos primeiros vinhos no mercado (a 19 de Maio de 2007), a Herdade do Rocim tem cerca de 60 hectares de vinhas (num total de 100 ocupados pela quinta) e produz 250 mil garrafas por ano.
E continua a crescer. Na colina fronteira ao edifício central da herdade, do outro lado da estrada nacional, mais quatro hectares de vinha estão a ser plantados. Encosta acima, com inclinações que podem chegar aos 30 graus e, até, um degrau intermédio para permitir o acesso das máquinas. Se alguém está a pensar em Douro, não anda longe. Não é de todo comum, no Baixo Alentejo, cultivar-se vinha nestes terrenos tão acidentados. Mas a Vidigueira é um Alentejo especial.
Sabores minerais
"Isto não é nada como o Alto Alentejo. Mas também é um Baixo Alentejo muito especial. Por não ser uma paisagem completamente plana, e graças à influência climática da serra de Portel, estes terrenos ajudam a produzir vinhos brancos que não são tão intensos como os do resto da região", explica Catarina Vieira, alongando o olhar do alto do edifício da adega. A brisa que sopra aqui no pátio panorâmico fala por si. Os 30 graus hão-de chegar, mas só lá mais para a tarde.
Para a enóloga da Herdade do Rocim, "a Vidigueira é a melhor região do Alentejo para se fazerem vinhos brancos com muita qualidade". E é nesse campeonato que Catarina se vê: "A nossa vinha branca não foi arrancada, tem 18 anos, e não é regada. E isso permite-nos fazer vinho branco mais elegante, mais mineral." Há aqui, também, um gosto pessoal de quem confessa a sua preferência, enquanto consumidora, pelos brancos, em detrimento dos tintos. "Gosto dos vinhos franceses, menos 'exibicionistas'. A exuberância no nariz cansa-me, engana-me."
São estas vinhas da casta Antão Vaz uma casta natural da Vidigueira que dão corpo ao Olho de Mocho Reserva, o branco de referência da casa. A Herdade do Rocim tem três marcas: Rocim (tinto e branco), Olho de Mocho (tinto, branco e rosé) e Grande Rocim, este último um tinto apenas reservado a colheitas de anos excepcionais. O objectivo, neste momento, é duplicar a produção anual, sem que isto implique qualquer concessão aos rigorosos padrões de qualidade auto-impostos.
"Produzir 4000 garrafas de qualidade máxima é fácil. O que é difícil é produzir em quantidade razoável sem baixar o nível", analisa Catarina Vieira. E aceitar esse desafio implica enorme conhecimento e muita dedicação. Ou seja, trabalho. Acabámos de passar por uma galeria envidraçada de onde se pode apreciar o ambiente asséptico da adega, uma nave dominada pela enorme passadeira superior (que em breve será remodelada e ampliada) que permite despejar as uvas directamente dentro das cubas. Ao fundo, o laboratório. Com dezenas de garrafas à espera de serem sujeitas a prova.
A cada 15 dias, o enólogo consultor, António Ventura, visita a herdade para avaliar as experiências de Catarina da sua enóloga assistente. "Faço variações [na composição dos vinhos] de um por cento, às vezes é excessivo, mas nunca se sabe se não é nesse um por cento que está o segredo." A verdade é que ela acaba por ser vítima do seu perfeccionismo. "Muitas vezes venho aqui à noite para fazer uma prova antes de estar com o engenheiro António Ventura. Não consigo provar à velocidade dele."
Da teoria à prática
Deste labor permanente, desta incessante busca pela perfeição saem vinhos elegantes e claramente diferenciados do padrão alentejano. Vinhos tintos menos frutados, brancos minerais que se diriam de outras paragens, mas que, no entanto, têm um carácter muito próprio. Agora, com obra feita, Catarina já conquistou toda a gente. Mas, no início, foi preciso provar que estava à altura da tarefa.
E a missão começou logo dentro de portas. "Quando vim para aqui, tinha a base teórica, mas não tinha o contacto com a terra. A primeira vindima que fiz foi aqui! Faltavam-me bases, fui a muitas formações, a todas as que se faziam cá." Se o pessoal (a herdade emprega dez pessoas a tempo inteiro) desconfiava, ainda mais tremeu quando percebeu que a enóloga tinha um crivo de qualidade cruelmente fino. "O povo daqui diz: 'Queres partir o coração, vai ao Rocim', por causa das uvas que vão para o chão. Em 2003, numa vinha já com três anos, não ficou uma uva, mandei tudo para o chão. O sr. Pedro [o feitor da propriedade, braço direito de Catarina] nem olhava para mim..."
Agora, a vinha é a vida de Catarina. Passeia pelas entrelinhas (os espaços entre fileiras de videiras) e explica por que razão umas são levemente aradas e as outras não, exibindo as flores silvestres da estação. "As que não são tocadas facilitam a entrada das máquinas e dos trabalhadores, diminui-se a erosão e minimiza-se a perda de humidade. As outras são aradas para evitar a formação de gretas profundas e para arejar os solos." Nesta vinha em particular, os ramos são orientados para cima e também para baixo, criando uma verdadeira parede de verde. "Aumenta a superfície de absorção solar. Mas só fazemos isto em oito hectares, tem de ser feito à mão, é um sistema muito trabalhoso."
Trabalho é o que não falta e especialmente nesta altura, em que muitos recursos estão concentrados no plantio da nova vinha. Mas Catarina não se fica por aqui. Em Cortes, distrito de Leiria, recuperou para vinha um terreno em que o avô tinha feito o primeiro vinho engarrafado da terra, o Vale da Mata. São quatro hectares de onde se arrancou o pomar entretanto plantado para dar novamente lugar a videiras. "O meu avô ainda é vivo e viu a vinha de regresso", diz ela, com uma ponta de emoção na voz. Depressa substituída pela visão empresarial: "Por enquanto, só produz tinto. Mas gostava de lá fazer um branco."
Uma herdade aberta
Turismo, cultura e saber
A Herdade do Rocim não é só uma casa de vinhos. Mas quer ser muito mais. Por enquanto, uma série de espaços polivalentes permite a realização de eventos e há vários pontos de interesse para visitas. O enoturismo está lançado, o calendário de congressos, encontros temáticos, iniciativas comerciais ou mesmo casamentos enche-se de datas. A cultura começa a ganhar o seu território e Catarina Vieira, a enóloga e coordenadora executiva do projecto, assume a ambição de criar um "centro de saber".
Como tudo isto são formas de passar pela herdade e o que mais apetece é mesmo ficar por lá, os planos já estão em marcha para a criação de um hotel de charme. Está prometido que se tratará de uma construção "de características arquitectónicas e funcionais coerentes com o que até aqui foi feito". E o que foi feito até aqui é qualquer coisa de exemplar, aliando as linhas e a luminosidade da arquitectura moderna (o projecto do complexo da adega e instalações adjacentes é da autoria do arquitecto Carlos Vitorino) à utilização de materiais tradicionais.
Esta alquimia funciona em pleno: com paredes de um metro de espessura em taipa, no estilo típico da região, a adega é um oásis de frescura em plena fornalha alentejana. Mas mesmo cá fora está-se bem, na esplanada panorâmica sobre o edifício ou nos vastos espaços ajardinados em redor. Com canteiros de ervas aromáticas.
Para além da adega propriamente dita e dos armazéns que gravitam à sua volta (sem esquecer o laboratório), podemos encontrar um auditório destinado a eventos de empresas, congressos ou debates. Mas também um wine bar onde, naturalmente, os vinhos da casa se fazem acompanhar de outras delícias da gastronomia alentejana, estas de carácter mais sólido.
No final de qualquer visita, passagem obrigatória pela loja, onde nem só de vinhos se faz a tentação: livros (em sinergia com a livraria que a família proprietária tem em Leiria e onde também se comercializam os vinhos do Rocim), ofertas diversas, doces, cadernos Moleskine, jóias e outros trabalhos artísticos também estão disponíveis.
Mas ir ao campo e ficar dentro de portas não lembra a ninguém. A herdade organiza visitas à área produtiva da adega e tem uma vinha pedagógica, onde os visitantes são levados numa viagem pelo ciclo biológico da videira e aprendem mais um pouco sobre as diferentes castas existentes na propriedade. Depois, é só comprovar uma velha máxima: quanto mais se sabe sobre o vinho, mais se aprecia o que temos no copo.
Que o vinho é cultura, isso é indiscutível. Mas a Herdade do Rocim quer ser também um espaço de outras artes. No passado dia 18, foi inaugurada uma exposição de pintura de Norberto Nunes, que estará em exibição até 20 de Agosto. Centrada no diálogo que o pintor estabelece com a obra literária de Fernando Pessoa, esta mostra não poderia estar melhor enquadrada: grandes frases do poeta dos heterónimos aparecem estampadas, um pouco por todo o lado, nas paredes interiores do edifício e na roupa dos funcionários. Aqui, Pessoa sempre foi uma inspiração.
O "vírus" do vinho saltou uma geração, mas apanhou Catarina em cheio. "Desde pequenina que ia às vinhas e brincava nas adegas", recorda. O vinho estava na vida de ambos os lados da família, pelo avô paterno e pelo avô materno. O pai, preocupado com "a consolidação do edifício financeiro da família", mostrou-se imune, mas a filha nunca teve dúvidas: "O que mais gosto é estar na vinha e fazer vinho." Catarina Vieira, 34 anos, engenheira agrónoma e enóloga, é o rosto e o cérebro da Herdade do Rocim.
"A vocação, ou se nasce com ela ou não. O trabalho é 90 por cento da receita, mas os outros dez por cento, os que fazem a diferença, vêm de dentro." E essa paixão fica bem evidente quando caminhamos pelas vinhas. Catarina vai falando, mas nunca deixa de observar atentamente as fileiras de ramos e folhas que, neste sol de Primavera, brilham em diferentes tons de verde. Os cachos de uvas já começam a engrossar. Endireita uma pernada aqui, corrige um alinhamento ali, arranca uma folha velha, retira um cacho subdesenvolvido. É quase compulsivo.
"Gosto de acordar cedo e ver as vinhas. Todos os dias. Sempre atenta a tudo: se as videiras estão direitas, se há ervas no solo, se aparecem sinais de potenciais doenças." Para o conseguir, fez uma opção de vida. "Vivo aqui, naquelas casas [aponta para um núcleo de habitações a algumas dezenas de metros do edifício da adega]. A minha é feita em taipa, muito fresquinha no Verão. Às vezes, à noite, até tenho de vestir uma camisola."
Aos 34 anos, solteira, Catarina não sente o apelo cosmopolita das cidades? "Claro! Às vezes até comento com amigos o quanto me apetecia comida sofisticada. Boa tenho aqui, com os produtos naturais sempre à mão, mas sofisticada, isso às vezes tenho mesmo de procurar! Quando quero ver gente, vou a Lisboa. Gosto de cidades grandes, com muita gente. Nas férias procuro sempre sítios movimentados."
Mas ela, que praticamente teve de ser arrancada de Bolonha, onde fazia investigação no âmbito do estágio de final de curso, para assumir o projecto da Herdade do Rocim, habituou-se ao ritmo e à filosofia do campo. "Gosto muito da terra, não me faz aflição o frio, o calor." E, depois, há a consciência profissional: "É preciso estar aqui. Não se pode querer ter um bolo e comê-lo ao mesmo tempo. Não dá para fazer um vinho aqui e viver em Lisboa."
Ter os pés bem assentes na terra, não implica menor gosto pelas viagens. Até porque liderar um projecto destes não se esgota na arte de fazer vinho. "Pois é [sorri], é preciso vendê-lo! E a maior parte das viagens que faço são de promoção e relações públicas. Costumo guardar sempre umas datas para o meu enriquecimento pessoal, porque acho que só a procura constante de conhecimento permite ambicionar a excelência. Mas este ano ainda não consegui ir a nenhum curso."
As viagens servem-lhe também para arejar as ideias e ter uma visão mais geral do seu trabalho na herdade. "Sair daqui pode inspirar-me. As grandes ideias surgem quando estamos longe, vê-se melhor o quadro. E vai-se buscar inspiração." Não espanta por isso que Catarina confesse que, se pudesse, gostava mesmo era de "estudar pelo mundo": "Um ano aqui, outro ali. Ter mundo dá-nos espessura."
Herdade do Rocim
Estrada Nacional 387 (entre Vidigueira e Cuba, distrito de Beja)
Coordenadas GPS: 7'85545W; 38'19687N
www.herdadedorocim.com
Tel.: 284415180
Visitas:
(com pré-marcação)
Todos os dias (11h00/21h00 horário de Verão; 11h00/19h30 horário de Inverno)