Fugas - Vinhos

Carlos Lopes

Calor, a quanto obrigas

Por Rui Falcão

Este ano não terá pretextos para o esquecimento sazonal a que votamos os vinhos generosos durante os meses de Verão. A Fugas deu a volta aos inventários e concluiu que opções não faltam

Faz parte do rol de mágoas e tristezas que temos de enfrentar, repetindo um fado a que é difícil escapar. Basta que se adivinhem os primeiros sintomas de calor, os primeiros dias de verdadeira canícula, para logo remetermos para o fundo da prateleira os vinhos generosos que nos tinham feito tão boa companhia durante os longos e penosos meses de Inverno, encaminhando-os, sem apelo nem agravo, para um esquecimento sazonal. Com maior ou menor melancolia, aceitando os factos com maior fleuma ou maior amargura, esta é uma fatalidade que se revela quase inevitável, bisando ano após ano numa desventura antecipadamente anunciada!

As máximas da sabedoria popular, sempre populares mas nem sempre acertadas ou razoáveis, indicam que o período de Verão será inconciliável com o consumo de vinhos generosos, os Moscatel, Madeira e Porto do nosso contentamento, os vinhos que melhor nos definem enquanto país produtor e que melhor representam Portugal no seu destino tão singular de país produtor de vinhos generosos. Não deixa de ser extraordinário que um país tão pequeno em dimensão geográfica consiga oferecer três dos grandes vinhos generosos do mundo. que, infelizmente, pouco valorizamos, de tão habituados que estamos a evidenciar as nossas debilidades em vez de promover as nossas qualidades.

Não será difícil perceber as razões para que a tradição imponha este divórcio sazonal com os vinhos generosos. Todos sabemos como é difícil, se não mesmo linearmente impossível, uma convivência pacífica entre o calor intenso e os vinhos alcoólicos, entre a canícula e os vinhos doces e pastosos, numa quadra do ano onde se privilegia a frescura e leveza, fugindo de tudo o que não ofereça contraste com o calor da época. Como conceito elementar, e numa análise mais superficial, o divórcio temporário com os vinhos generosos até poderá parecer minimamente razoável.

A matéria, porém, não é tão evidente e simplista como poderia parecer numa primeira investida. Na verdade, o pressuposto para a desavença temporária com os vinhos generosos assenta num simples erro de cálculo, colocando os vinhos generosos num só saco, como se fossem uma só entidade, como se estes se apresentassem num só estilo e numa só cor. Sim, é verdade que alguns estilos não se adequam facilmente às conveniências do Verão, e não será fácil acreditar em harmonias com os estilos mais densos e doces, com os vinhos mais pastosos e pesados, como os vinhos Moscatel de Setúbal e Douro, ou com a maioria dos vinhos do Porto da família Ruby, desde os mais correntes até às categorias mais especiais dos LBV e Vintage.

O mesmo, porém, já não se passará com os vinhos do Porto da classe Tawny, os mais fáceis de adaptar ao descanso dos longos fins de tarde, desde que bem refrescados, servidos bem perto da barreira dos 12ºC, acompanhando amêndoas torradas ou outros frutos secos que os complementem de forma igualmente primorosa. Enquadram-se neste capítulo com especial ventura os Tawnies de 10 e 20 Anos, os mais frescos, leves e versáteis dos vinhos com indicação de idade, bem como os Porto Colheita mais simples, de datas mais recentes, sem o peso e a complexidade dos vinhos mais velhos que requerem espaço e disposição para maior meditação.

E se em tempos recentes as recomendações possíveis de Vinho do Porto se ficavam pela família dos tawnies, sem espaço funcional para mais argumentos, a onda recente de investimento e atenção dedicada à jovem família dos Porto brancos veio abrir uma nova janela de oportunidades que há muito se encontrava negligenciada. É aqui, no mundo renovado dos Portos brancos secos, que poderemos ir buscar a melhor inspiração para prosseguir o consumo de vinhos generosos durienses no Verão. Tudo neles convida à aventura, apoiados na secura, na tensão de uma acidez refrescante e na facilidade de adaptação à gastronomia mais leve da estação. Fuja, durante esta estação mais soalheira, dos estilos mais doces, concentrando-se nos Porto brancos mais secos e austeros.

O que não impede que continue a ser nos vinhos generosos da ilha da Madeira que se consigam descobrir os melhores motivos para seguir entrincheirado no consumo de vinhos generosos durante o Verão, graças à multiplicidade de estilos e variedades, sempre assentes numa acidez pungente que os refresca e revitaliza de forma admirável, mesmo nos estilos mais doces e empolgados.

Porém, os vinhos da Madeira que melhor defendem a frescura por que tanto suspiramos durante o Verão fundamentam-se nas castas Verdelho, vinificada sempre num estilo meio seco, e, acima de tudo, na casta Sercial, desenhada obrigatoriamente num discurso extra seco, duro e tenso, num registo tendencialmente austero mas retemperador, perfeito para as entradas frias, ainda antes do início da refeição, ou para acompanhar saladas e pratos frios e leves, suportando com coragem o assédio do vinagre ou do limão no tempero de saladas. coisa a que poucos vinhos do mundo conseguem sobreviver.

São estes os encantos do Vinho da Madeira e do Vinho do Porto branco seco, senhores de uma imensa diversidade de estilos e feitios que os convertem em vinhos versáteis e retemperadores, oportunos para refrescar e alegrar nos dias de maior calor. Este ano, com tantas alternativas válidas e sedutoras, não terá pois desculpas para sustentar o divórcio sazonal tradicional com os vinhos generosos portugueses. Atreva-se!

Escolhas

Poças Special Reserve Dry White

Durante muitos anos, demasiados anos, os vinhos do Porto brancos foram relegados de forma implícita para segundo plano, vivendo quase escondidos sob a ditadura dos vinhos tintos, subjugados perante a robustez dos Porto Ruby e a serenidade dos Porto Tawny. Foram poucas as casas a insistir na família dos Porto brancos, abandonando o género a vinhos simples e muito doces, por regra enjoativos, sem brilho e sem glória. E de repente, numa mudança radical que apanhou muita gente do sector desprevenida, o sector começou a apostar seriamente nos Porto brancos de qualidade, porfiando num estilo mais seco e comedido, mais austero e fresco, mais sério, com vinhos mais velhos e mais ambiciosos, com mais anos de envelhecimento. Acima de tudo, e para além de todas as demais qualidades, vinhos muito mais frescos e atraentes, suficientemente versáteis para serem bebidos durante os meses de Invernou. ou durante os longos meses de canícula. Ora este Poças Special Reserve Dry White apresenta-se como um dos melhores exemplos, seco e vivo como o nome pressagiava, vestido de cor amarela ouro velho, numa tonalidade viva e brilhante. Deliciosamente seco na boca, medianamente austero, viçoso e espevitado, com notas bem evidentes de casca de laranja e amêndoas torradas, a que se acrescem restolho e chá, é um vinho de Verão notável, capaz de ser bebido sozinho, a acompanhar uma conversa ou a abrilhantar o início de qualquer refeição.

Barbeito Sercial 10 Anos

Os vinhos da Barbeito, mesmo nas versões atapetadas com as castas tradicionalmente mais melosas, como os adoráveis Boal ou Malvasia, dispõem-se sempre como ilustres candidatos a poderem ser bebidos no Verão, tal a dose de acidez com que costumam ser brindados. Na verdade, ninguém leva a acidez natural dos vinhos da Madeira tão longe, e de forma tão determinada, quanto Ricardo Freitas, o homem responsável pelos autênticos vinhos de perfumaria que saem deste pequeno produtor. Independentemente do estilo e da casta, os vinhos da Barbeito são capazes de proporcionar alegrias durante todo o ano. Mas são os vinhos mais secos, das castas vinificadas no estilo mais duro, que melhor se adaptam aos calores da época, capazes de contrariar qualquer dia de Verão, por mais quente e abafado que se apresente. E nenhum se apresenta tão poderoso e intenso na frescura e alegria como este Sercial com indicação de idade, um 10 Anos tremendo na sensação de segurança e na excitação geral, de perfil nervoso e tenso, teso e intransigente, vibrante na boca, seco e vivo, com um final de boca eléctrico e sem qualquer dose de condescendência. Com um vinho deste calibre, não há Verão que consiga resistir!

Blandy's Colheita Sercial 2001

É a mais seca entre as várias variedades madeirenses, proporcionando os vinhos mais tensos e eléctricos, vinhos duros e enxutos que, por vezes, quase podem quase confundidos com uma certa noção de agressividade, face a tanta dureza e secura, habituados que estamos ao conforto do açúcar. Apesar de os vinhos da casta Sercial não serem vinhos fáceis, daqueles que se revelam capazes de seduzir desde o primeiro instante, de empatia imediata e de verbo dócil, este Colheita da Blandy's, já com dez anos de vida, o primeiro Colheita desta casta que a Blandy's apresentou, denuncia ser um vinho intenso e tremendamente fresco, com notas de palha seca, dono de alguma secura e dureza, sem que estas alguma vez se revelem excessivas. Por sua vez o nariz surpreende pelas notas agradáveis e serenas de amêndoa torrada, muito restolho e palha, bem como uma ou outra invocação de brioche. Firme e intenso, bem composto, fresquíssimo e vivo embora sempre civilizado, é um Sercial mais cordato que o habitual, urbano e cosmopolita, sem ponta de agressividade, oferecendo uma versatilidade inesperada para o estilo. O final de boca revela-se longo e ordeiro, o que o converte num vinho capaz de servir como aperitivo, no intróito da refeição, mostrando igualmente aptidão para acompanhar uma canja de galinha ou um gaspacho alentejano, uma das sopas deharmonização mais problemática.

Henriques & Henriques Terrantez 20 Anos

É difícil imaginar um vinho mais acertado para os dias quentes, para os dias frios. e para os dias intermédios, que este Terrantez com indicação de idade da Henriques & Henriques. Nascido de uma das variedades quase perdidas da Madeira, de que hoje sobrevivem já muito poucos pés na ilha, representa a súmula perfeita do vinho certeiro na versatilidade e propensão para ser bebido durante todo o ano. Apesar de volumoso e pujante, é incrivelmente fresco e grave, sempre tenso e excitante, vertiginoso desde o ataque até ao final de boca. Apresenta-se enfarpelado numa bonita cor de traços ambarinos onde se denota um menisco com tendências esverdeadas. Sobressalta desde o primeiro instante pelas notas salinas e pela sensação profundamente iodada que transmite, insinuando de imediato imagens de mar e maresia, de mar encapelado e de brisa marítima. Depois surgem os frutos secos em profusão, a que ainda há que acrescentar o perfume exótico das notas de casca de laranja cristalizada. A boca, essa confirma por inteiro a elegância e sedução do nariz, sobrepondo uma tensão e audácia inauditas, uma grandeza e magnitude que o abalança para o céu na terra. Apesar de intenso e poderoso, mostra-se incrivelmente fresco e viçoso, gigante na entrega, dramático no final mordaz. Um vinho excepcional que simboliza a perfeição e encanto da Madeira, bem como a versatilidade dos seus vinhos.

Burmester Colheita 1989

A gama Tawny presta-se especialmente bem aos meses de Verão, oferecendo vinhos deliciosos e simultaneamente sofisticados, convenientes para os finais de tarde, no momento em que as conversas se começam a soltar à medida que o sol principia a dar os primeiros sinais de tréguas. Dentro da família dos vinhos aloirados, sobressaem os Porto com indicação de idade, sobretudo os mais jovens, de 10 e 20 anos, sempre bem acompanhados pelos Porto Colheita, especialmente os mais adolescentes, ainda sem o peso e sofisticação que só o tempo pode acrescentar. O único cuidado a reter reside nas temperaturas de serviço, forçosamente mais frescas que o habitual nos meses de Inverno, obrigando a refrigeração forçada até se atingirem temperaturas próximas dos 12ºC. Com estes cuidados em mente nada como um Burmester Colheita 1989, a companhia ideal para os finais de tarde ou os momentos pós refeição, apresentando-se na sua cor ambarina acobreada de brilho intenso. O nariz surge delicioso nas notas profundas de amêndoas torradas, na sedução do brioche, bolo inglês e biscoito, na sofisticação do bolo de mel, canela e açúcar mascavado. Apesar de gordo e viscoso, desponta bem equilibrado por uma acidez assertiva e bem proporcionada, sem máculas ou desvios, num vinho de puro prazer e emoção.

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