Faz parte do rol de mágoas e tristezas que temos de enfrentar, repetindo um fado a que é difícil escapar. Basta que se adivinhem os primeiros sintomas de calor, os primeiros dias de verdadeira canícula, para logo remetermos para o fundo da prateleira os vinhos generosos que nos tinham feito tão boa companhia durante os longos e penosos meses de Inverno, encaminhando-os, sem apelo nem agravo, para um esquecimento sazonal. Com maior ou menor melancolia, aceitando os factos com maior fleuma ou maior amargura, esta é uma fatalidade que se revela quase inevitável, bisando ano após ano numa desventura antecipadamente anunciada!
As máximas da sabedoria popular, sempre populares mas nem sempre acertadas ou razoáveis, indicam que o período de Verão será inconciliável com o consumo de vinhos generosos, os Moscatel, Madeira e Porto do nosso contentamento, os vinhos que melhor nos definem enquanto país produtor e que melhor representam Portugal no seu destino tão singular de país produtor de vinhos generosos. Não deixa de ser extraordinário que um país tão pequeno em dimensão geográfica consiga oferecer três dos grandes vinhos generosos do mundo. que, infelizmente, pouco valorizamos, de tão habituados que estamos a evidenciar as nossas debilidades em vez de promover as nossas qualidades.
Não será difícil perceber as razões para que a tradição imponha este divórcio sazonal com os vinhos generosos. Todos sabemos como é difícil, se não mesmo linearmente impossível, uma convivência pacífica entre o calor intenso e os vinhos alcoólicos, entre a canícula e os vinhos doces e pastosos, numa quadra do ano onde se privilegia a frescura e leveza, fugindo de tudo o que não ofereça contraste com o calor da época. Como conceito elementar, e numa análise mais superficial, o divórcio temporário com os vinhos generosos até poderá parecer minimamente razoável.
A matéria, porém, não é tão evidente e simplista como poderia parecer numa primeira investida. Na verdade, o pressuposto para a desavença temporária com os vinhos generosos assenta num simples erro de cálculo, colocando os vinhos generosos num só saco, como se fossem uma só entidade, como se estes se apresentassem num só estilo e numa só cor. Sim, é verdade que alguns estilos não se adequam facilmente às conveniências do Verão, e não será fácil acreditar em harmonias com os estilos mais densos e doces, com os vinhos mais pastosos e pesados, como os vinhos Moscatel de Setúbal e Douro, ou com a maioria dos vinhos do Porto da família Ruby, desde os mais correntes até às categorias mais especiais dos LBV e Vintage.
O mesmo, porém, já não se passará com os vinhos do Porto da classe Tawny, os mais fáceis de adaptar ao descanso dos longos fins de tarde, desde que bem refrescados, servidos bem perto da barreira dos 12ºC, acompanhando amêndoas torradas ou outros frutos secos que os complementem de forma igualmente primorosa. Enquadram-se neste capítulo com especial ventura os Tawnies de 10 e 20 Anos, os mais frescos, leves e versáteis dos vinhos com indicação de idade, bem como os Porto Colheita mais simples, de datas mais recentes, sem o peso e a complexidade dos vinhos mais velhos que requerem espaço e disposição para maior meditação.