Fugas - Vinhos

Rui Gaudêncio

Preto mais preto, não há

Por Rui Falcão

Tivessem os californianos conseguido aprender algo sobre a história de Portugal e do Douro, e saberiam agora como resolver um dos problemas básicos da sua viticultura.
Começo por lançar um repto, uma simples pergunta de algibeira - qual será a terceira casta mais plantada no estado da Califórnia, a pátria de facto dos vinhos norte-americanos? Muito provavelmente a resposta não surgirá na ponta da língua, mas não constituirá certamente grande surpresa se, para facilitar a empreitada, adiantar que as duas castas mais plantadas no estado são, respectivamente, o Cabernet Sauvignon e o Chardonnay. Até aqui, nada de sobressaltos!

Mas voltemos então a essa terceira variedade tentando desvendar a sua identidade. A escolha ressaltará naturalmente entre os suspeitos do costume, entre os crónicos Merlot, Syrah ou Pinot Noir, as castas que habitualmente assomam nos contra-rótulos dos vinhos californianos, dependentes de uma inspiração que se jure mais bordalesa, mais sugestionada pelos tintos das Côtes du Rhône ou mais iluminada pelos vinhos do estilo borgonhês. Qual delas será? A resposta, como já se espera pela prosa, não é nenhuma destas, mas sim a variedade... Rubired!

Pois é, para pasmo geral, a terceira variedade mais plantada na Califórnia é o Rubired, uma casta absolutamente desconhecida do grande público... e de muitos profissionais, ausente de qualquer contra-rótulo oficial, uma casta enredada sob um manto de mistério, camuflada do público e da imprensa. Até seria fácil acreditar que o Rubired poderia ser uma mera uva de mesa, sem aplicação no vinho mas, infelizmente, o seu destino está mesmo circunscrito ao vinho! Infelizmente porque o Rubired é uma casta tinta híbrida, composta pelo homem, maquinada na Califórnia por um Dr. Harold Olmo com um único propósito, a de acrescentar cor aos vinhos tintos.

De génese verdadeiramente intrincada, a casta tinta Rubired advém do cruzamento forçado de várias outras variedades, com essa particularidade tão curiosa para nós, portugueses, de incluir na sua fundação algumas castas que nos são queridas. Senão veja-se que o Rubired resulta do cruzamento directo das castas Alicante Ganzin e a portuguesíssima Tinto Cão, do Douro. Porém, se o Tinto Cão é uma casta de provas dadas, já o Alicante Ganzin redunda da mestiçagem entre o Aramon Rupestris Ganzin e o Alicante Bouschet, a casta estrangeira mais portuguesa de sempre, alentejana por opção e adopção. Declaradamente, se quisermos complicar as coisas, podemos ainda sobrepor que a Aramon Rupestris Ganzin é um hibridismo entre dois Aramon, de Vitis Vinífera e Vitis Rupestris, e que o Alicante Bouschet é consequência do cruzamento forçado entre as variedades Petit Bouschet e Grenache. Se procurássemos por maior detalhe, poderíamos ainda complicar um pouco mais a ascendência deste Rubired tão obscuro...

Apesar de a casta nunca ter sido aplicada em vinhos comerciais, foram produzidos ensaios académicos determinantes para averiguar sobre os possíveis predicados da casta para a elaboração de vinhos estremes. Segundo todos os estudos realizados, a casta é capaz de proporcionar vinhos de cor intensa e profunda, mas sem qualquer expressão, sem aroma, corpo ou estrutura que justifiquem a sua utilização. São, convenhamos, palavras e descritores muito pouco animadores para aquela que é a terceira casta mais plantada da Califórnia...e que poucos conhecem ou reconhecem.

O que nos conduz direitos à pergunta fatal - para que serve então esta casta Rubired de recorte tão nebuloso? Surpreendentemente, a resposta aponta para uma espécie de xarope feito com as uvas da casta, um aditivo enológico proveniente da concentração e redução das uvas Rubired, dando azo a produtos como o Mega Purple ou 8000 Purple, nomes comerciais de concentrados de Rubired, destinados a fomentar e acentuar a cor dos vinhos tintos californianos mais baratos, oferecendo-lhes uma tonalidade preta retinta... que, obviamente, estes vinhos não teriam de forma natural.

A sua maior utilidade será pois como corante muito activo, tão potente que a maioria dos enólogos californianos, dos raros que admitem o seu uso, recomendam doses que não devem ultrapassar os 0,05 a 0,1 por cento do lote, sob pena de tornar o vinho demasiado viscoso e imbebível. É que por ser um concentrado de uva, os Mega Purple desta vida também acrescentam açúcar e glicerina ao lote, disfarçando as notas vegetais de uvas menos maduras e mascarando eventuais problemas de contaminação com Brett. Uma "solução mágica" e muito pouco apetecível que advém de um dos equívocos mais graves que todos nós, consumidores de vinho, insistimos em manter, a expectativa de que os vinhos tintos de cor mais carregada sejam melhores e mais concentrados do que os vinhos tintos de cor mais pálida.

E sob esse erro de avaliação, e por causa dele, tantos excessos são cometidos, como estes aditivos corantes tão bem o demonstram. Porque, sejamos claros, um produtor que não consiga obter vinhos de cor "suficientemente escura", por exemplo, no Douro ou Alentejo, duas regiões quentes, estará muito provavelmente a fazer qualquer coisa de errado. O grande problema é que uma cor "suficientemente escura" deixou de ser o padrão mínimo aceitável, exigindo-se agora cores pretas retintas em todos os vinhos, de todas as colheitas, autênticos buracos negros irrealistas que só poderão ser alcançados, sobretudo nos vinhos de maior volume e de preço mais reduzido, com recurso a expedientes deste tipo. Felizmente que, por estarem alicerçados em castas híbridas, estes concentrados são ilegais na Europa.

Tivessem os californianos tido ocasião de aprender algo com as lições do passado, nomeadamente com a história portuguesa, e saberiam que o principal condicionante histórico que conduziu à demarcação do Douro, uma das regiões mais antigas do mundo, assentou na urgência em regularizar e fiscalizar as muitas adulterações impostas ao vinho, mormente na definição da cor, com a adição frequente de baga de sabugueiro, um corante natural que adulterava o vinho fino da época. Se foi possível resolver um problema semelhante há mais de 255 anos, sob o governo implacável do Marquês de Pombal, com a erradicação coerciva da planta do sabugueiro na vizinhança do Douro, seguramente que será possível resolver este problema agora... eventualmente com o recurso de procedimentos análogos!
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