Em Portugal há cerca de 300 castas plantadas e destas 250 são nacionais. É um património ímpar no mundo que se encontra disperso por milhares de vinhas novas e velhas, algumas mesmo muito velhas. Nem todas produzem bom vinho, mas têm um passado por trás e nunca se sabe se voltarão a ter futuro. O mundo do vinho é uma roda imparável, sujeita a modas, a ciclos económicos e à aleatoriedade da natureza.
A caracterização das castas nacionais começou a ser feita há 25 anos e já se sabia muita coisa sobre quase todas elas. Mas faltava sistematizar esse conhecimento, espalhado por inúmeras fontes e organismos. Foi essa lacuna que levou o Instituto da Vinha e do Vinho (IVV) a lançar o Catálogo das Castas para Vinho Cultivadas em Portugal, sob a coordenação técnico-científica de Rogério de Castro. O primeiro volume foi apresentado no passado dia 14, em Lisboa, e reúne fichas tipo bilhete de identidade sobre 90 variedades.
Nos últimos anos, a ciência tem conseguido traçar a origem e a evolução de uma grande parte das castas existentes em Portugal e a realidade nem sempre coincide com a ideia adquirida. Alguns mitos só persistem por razões comerciais. Por exemplo, as garrafas de muitos vinhos do Alentejo, do Douro, do Dão e da Península de Setúbal que ostentam nos rótulos a casta Verdelho contêm, na verdade e na maioria delas, Gouveio ou Verdejo da região espanhola de Rueda. O verdadeiro Verdelho ainda se confina, por agora à Madeira e aos Açores, embora esteja a ser introduzido (ou reintroduzido) no continente. E o agora tão afamado Sousão do Douro não é mais do que o Vinhão do Minho. Existe uma casta Sousão, diferente do Vinhão, mas também só se encontra na região dos Vinhos Verdes.
Já agora: quantas pessoas saberão em Portugal da existência da casta Água Santa? Não muitas e ainda menos saberão que esta variedade foi obtida por cruzamento de Trincadeira com Castelão na Estação Agronómica Nacional, em 1948. É precisamente esta cultivar que abre o catálogo das castas. Cada ficha traça o retrato da variedade, desde o aspecto da folha e do cacho às suas aptidões culturais e enológicas e dispersão geográfica, sem esquecer as suas coordenadas genéticas (o chamado perfil de microssatélites), obtidas através do estudo do ADN da planta.
Está previsto o lançamento futuro de um segundo volume com mais algumas dezenas de variedades. Antes disso, o IVV vai arrancar com um projecto ainda mais ambicioso, que é o estudo e a caracterização enológica das castas. A ideia é saber que tipo de vinho produz cada uma delas. Na Estação Vitivinícola Nacional, em Dois Portos, no concelho de Torres Vedras, as castas existentes já estão a ser estudadas em condições idênticas. Mas o número de videiras de algumas variedades é tão pequeno que ainda não permite fazer micro vinificações consideradas representativas.
O ocaso anti-natura da Trincadeira e do Castelão
Para muitas castas, o melhor estudo já tem vindo a ser feito há muito tempo pelos produtores de vinho nacionais. Foi, de resto, a alguns deles que o director da Revista de Vinhos, Luís Lopes, recorreu para reunir amostras de vinhos varietais de 2010 e proporcionar na apresentação do Catálogo das Castas uma prova comparativa de 34 castas (17 brancas e 17 tintas). A prova, rara e didáctica, mostrou que castas brancas como a Cercial ou tintas como o Moreto, a Tinta Francisca ou o Rufete podem originar vinhos magníficos. E pôs também em evidência a enorme diversidade vitícola nacional e a insensatez de muitos produtores, que insistem em povoar os novos vinhedos de Touriga Nacional, Cabernet Sauvignon, Chardonnay, Merlot ou Syrah.
A atracção, de norte a sul do país, por castas estrangeiras e por um número cada vez mais reduzido de castas nacionais tem levado muita gente a cometer erros colossais e a esquecer, por exemplo, as consequências das alterações climáticas. Como lembrava Rogério de Castro, duas das castas que mais aguentam o calor são a Trincadeira e o Castelão e, no entanto, a presença de ambas tem vindo a diminuir no país, quando seria de esperar o contrário.
Por outro lado, os programas de modernização da viticultura portuguesa, apoiados por fundos comunitários e nacionais, têm provocado a destruição de inúmeras vinhas velhas e ameaçado a conservação de algumas castas. Nem todas as vinhas velhas são boas, a maioria será até má, pelas castas de pouca qualidade que têm. Mas muitas são verdadeiros tesouros. Só que não existe nenhum projecto de inventariação e classificação das parcelas que merecem efectivamente ser conservadas (a tarefa não é fácil, reconheça-se), pelo que algumas delas acabam destruídas com o apoio financeiro do próprio Estado.
Vinhos velhos e eternos
Claro que nem tudo é mau. A cultura da vinha viveu congelada durante muito tempo em práticas empíricas, nem sempre amigas da qualidade. Mas nunca como hoje se fez tão boa viticultura e enologia. E mesmo o arcaísmo herdado pelas novas gerações de viticultores teve o seu efeito virtuoso: permitiu conservar uma diversidade de métodos, de estilos de vinhos e de castas que constituem hoje uma imensa riqueza e uma inesgotável fonte de inspiração.
Alguns dos vinhos de antigamente seriam hoje moderníssimos, se os produtores e os consumidores tivessem paciência para esperar pela sua evolução. O IVV possui uma vasta garrafeira de vinhos antigos e uns quantos puderam ser provados ao almoço, permitindo confirmar isso mesmo. Perante a complexidade, frescura e vivacidade dos tintos com 11,5% de álcool de 1980 e 1983 da Adega Cooperativa de Oliveira do Bairro, ou do ValdArcos de 1989, ou ainda dos Bageiras e Quinta dos Roques de 1990, por exemplo, é impossível não ficar saudoso dos vinhos clássicos. Já para não falar dos curiosos aperitivos e abafados da Adega do Cartaxo da década de 50 do século passado e de alguns Madeira.
Um deles, um Malvasia de 1879 e engarrafado em 1938 de Luiz Gomes da Conceição, é a confirmação de que os Madeira podem ser eternos. Outro, um Vinho Surdo de Listrão do Porto Santo, colheita de 1941 e engarrafado em 1947, não nos levou aos céus, mas valeu pela raridade. Não se conhece a sua proveniência. Sabe-se, isso sim, que "surdo" era o nome que chamavam ao vinho fortificado/abafado da Madeira. E o Listrão é uma casta quase desaparecida do arquipélago da Madeira. Os poucos cachos que ainda se produzem no Porto Santo são vendidos na rua a turistas.
Provou-se ainda um Madeira Verdelho de 1941, da Junta Nacional do Vinho, e bastaria esta garrafa para o almoço ser memorável. O vinho tem uma acidez quase arrepiante e uma doçura austera e cativante que nos deixa literalmente a salivar. Fantástico.