Há cerca de uma década e meia, a empresa fez um desinvestimento estratégico no vinho do Porto, para apostar em força nos vinhos de mesa. Criou uma Fine Wine Division e passou a produzir vinhos muito bem feitos mas comerciais. Conseguiu, no fundo, fazer o mais difícil: produzir muito com qualidade e a bom preço.
Mas o que dá verdadeira notoriedade são os grandes vinhos, mesmo se produzidos em pequenas quantidades, e essa tem sido a lacuna daReal Companhia Velha. Apesar de possuir cerca de 750 hectares de vinhas e de ter vindo nos últimos anos a fazer um fantástico trabalho de recuperação vitícola e ecológica em algumas quintas, a empresa da família Silva Reis tem privilegiado a produção de vinhos de gama média.
Agora, a ideia é elevar a fasquia, aproveitando o grande potencial de algumas propriedades para melhorar os vinhos já existentes e produzir novos vinhos, alguns de nível superior. Para o conseguir, a companhia convenceu Jorge Moreira, produtor do Poeira (um dos novos grandes vinhos do Douro) e também dos magníficos vinhos da Quinta de La Rosa, a regressar à casa onde tinha começado a sua carreira de enólogo. Desta vez, para chefiar toda a enologia da empresa.
Jorge Moreira começou a trabalhar no ano passado, que não foi dos melhores para a produção de grandes vinhos. Mesmo assim, deu início a um novo projecto, a linha Séries, uma espécie de laboratório da empresa. A ideia é testar o potencial das inúmeras castas que acompanhia possui e fazer vinhos diferentes que podem ou não ter continuidade comercial.
A experiência começou com um branco de Gewürztraminer e um tinto de Rufete, uma das muitas castas do Douro que caíram em desuso. São ambos produzidos com uvas da Quinta do Cidrô, em São João da Pesqueira. O primeiro é um vinho com o aroma típico da casta (líchia, rosas) mas muito Douro, pela fruta de pomar e pelo volume e madureza que também revela.
Muito intenso de aroma, sofre uma metamorfose na boca, surgindo bastante seco e fresco, graças a uma acidez muito viva. O Rufete é ainda mais surpreendente. Tinto de Verão, tem uma fruta muito fresca, um carácter vegetal contido, taninos macios e um palato fresquíssimo.
A Jorge Moreira foi dada também carta branca para fazer vinhos na Quinta das Carvalhas (a mais emblemática da empresa) que possam vir a ser ícones da Real Companhia Velha. O objectivo é criar um pack premium de quatro vinhos com a chancela Carvalhas: um branco, um tinto, um Porto Vintage e um Tawny muito velho.
Contrariando as adversidades climatéricas da vindima de 2010, Jorge Moreira e a sua equipa fizeram um branco e um tinto a partir de vinhas velhas das Carvalhas. O Vintage será da colheita de 2009 e o Tawny, intitulado Memórias do século XIX, resultou de um lote de vinhos de 1867 a 1900. Uma coisa séria que não custará menos de mil euros a garrafa.
O branco não está pronto a beber e o tinto também não sairá para o mercado tão cedo, mas já se pôde provar. Muito marcado pela madeira, como seria de esperar, é um vinho complexo e austero, com taninos vigorosos e uma grande frescura. Ainda é cedo de mais para se saber se merecerá o estatuto de ícone da Real Companhia Velha.
Por agora, o que vale mesmo a pena beber é o tinto Quinta de Ventozelo Reserva 2009 (15 euros), um dos vários vinhos que se provaram em dois dias de viagem pelo universo da Real Companhia Velha. Belíssimo aroma, volume generoso, fruta deliciosa, grande equilíbrio. Um vinho que atesta o grande potencial (desperdiçado até agora) da Quinta de Ventozelo, adquirida em 2008 ao grupo galego Proinsa, em troca de imobiliário em Vila Nova de Gaia.
Ainda se bebeu um Porto Vintage de 1871, coisa rara. Mas a garrafa esteve demasiado tempo aberta e o vinho já se mostrou um pouco cansado.
Grandjó, o "vintage das terras altas"
O Grandjó Late Harvest é o grande vinho branco doce natural português. Na Real Companhia Velha chamam-lhe o "Vintage das terras altas" e a designação faz todo o sentido. Os seis hectares de onde vêm as uvas, na quinta do Casal da Granja, situam-se a cerca de 600 metros de altitude, num planalto próximo de Alijó com condições propícias para a infecção dos cachos com Botrytis cinérea, a chamada podridão nobre; e a qualidade do vinho é da mesma grandeza de um Porto Vintage. Tal como este, pode durar muitas dezenas de anos.
O mais antigo Grandjó que se conhece é de 1925. A empresa só possui oito garrafas. A nona foi aberta na semana passada, para uma prova vertical de Grandjó realizada na Quinta das Carvalhas (ver também texto de Rui Falcão).
Era de esperar uma prova desigual, porque se contava com um confronto entre a colheita de 1925 e os Grandjó que a empresa voltou a produzir a partir de 2002. Mas Pedro Silva Reis quis fazer uma surpresa e juntou o Grandjó 1955, que poucos saberiam que também existia.
Na verdade, foram feitas muitas mais colheitas de Grandjó do que se imagina. O vinho começou a ser produzido na primeira década do século passado. Em 1910, já depois de ter plantado vinhas com a casta Sémillon, a empresa contratou um professor de Bordéus, J. Laborde, para, durante um mês, ensinar a produzir um vinho segundo o mesmo método do Sauternes, o grande vinho branco doce francês.
O sucesso não foi imediato e teve até os seus detractores, mas deixou eufóricos Pedro Bravo e Duarte de Oliveira, que, no seu livro Vinificação Moderna, de 1925, se referem assim ao novo vinho: "(...) vinho côr de palha claro, com força alcoólica natural, oscillando entre 11º a 12º centesimaes; muito adamado (assucar 40,0), unctuoso, devido à sua riqueza em glycerina; com gôsto recordando o Sauterne, mas com um sabôr intruso a aniz; aromático e de uma limpidez levada ao seu máximo de perfectibilidade".
O vinho acabou por imporse junto dos apreciadores mais exigentes e tornou-se muito famoso no Brasil. Era tal a sua fama que começou a ficar cada vez mais comercial, ao ponto de na década de 60 do século passado ter entrado num declínio que conduziu ao seu desaparecimento.
Em 2002, a Real Companhia retomou a produção do vinho, recorrendo novamente à casta Sémillon (a Boal do Douro). O método é o mesmo e consiste em ir vinificando os cachos afectados com a podridão nobre (bagos fortemente desidratados e com grande concentração de açucares e ácidos) deixados na vinha. A recolha pode começar no final de Outubro e terminar só em Janeiro ou Fevereiro.
A primeira experiência não correu muito bem, mas em 2004 o esforço recompensou. Portugal voltava a ter um grande vinho branco doce de colheita tardia. O Grandjó voltou a ser produzido em 2005, 2006, 2007 e 2008, mas, por agora, o único que consegue ombrear com o fantástico 2004 é o Grandjó 2007. Dizemos "por agora" porque nunca se sabe como estes vinhos vão evoluir. Quem imaginaria que o Grandjó de 1925 pudesse durar até aos nosso dias? Chegou, está magnífico e não morrerá tão cedo.
Não é um vinho doce muito concentrado, como a sua idade faria supor. É até algo seco. Depois da garrafa aberta, o aroma não pára de evoluir, começando com evocações mais florais, de chá, para fazer sobressair depois a fruta exótica. Na boca está ainda vivíssimo, com uma acidez tocante e vibrante que o faz perdurar durante muito tempo no palato e na memória.
O Grandjó 1955 é outro vinho extraordinário. O estilo é o mesmo, mas está mais concentrado, denotando toques frutados um pouco mais tropicais. A frescura de boca é igualmente admirável.
Os Poeira de Jorge Moreira
A prova vertical do Grandjó Late Harvest começou na Quinta das Carvalhas mas acabou nas vinhas de Jorge Moreira, situadas a poucos quilómetros de distância, no vale do Pinhão, num almoço em que se provaram alguns dos seus vinhos.
O que restou das garrafas do Grandjó 1925 e 1955 ainda estava melhor do que na prova e o vinho mostrou qualidades absolutamente extraordinárias na companhia de um queijo de cabra curado de Trásos-Montes. O almoço abriu com um Poeira branco de Alvarinho de 2010, feito com uvas da própria quinta.
Não é a casta mais provável para o lugar, mas resulta muitíssimo bem. Fermentado parcialmente em barrica, é um vinho de aroma intenso, cheio e estruturado e com uma enorme acidez que lhe dá grande equilíbrio e frescura. Beberam-se depois alguns Poeira e Pó de Poeira (a segunda marca).
E destes vale a pena destacar o Poeira tinto de 2002, servido em magnum e que mostrou estar em grande forma, e os Poeira tinto de 2008 e 2009. O último está pronto a beber e cativa de imediato. É um vinho mais próximo do perfil típico dos vinhos do Douro, com fruta bem atempada, grande equilíbrio e envolvência, belos taninos e sabor pronunciado. O de 2008 é um vinho mais sério e introspectivo, com grande complexidade e frescura. Precisa de cave e paciência para se revelar em toda a sua plenitude. Tem tudo para durar muitos anos e provocar grande emoções futuras.