Fugas - Vinhos

Nelson Garrido

Os vinhos da Áustria em 48 horas

Por Pedro Garcias

A Fugas viajou dois dias pela Áustria vitícola. Não subiu aos vinhedos "toscanos" da Estíria, nem aos monumentais socalcos de Wachau situados sobre o Danúbio, mas deliciou-se com os vinhos doces de Burgenland e os formidáveis Grüner Veltliner e Rieslings de Kamptal, na Baixa Áustria

1. As vinhas de Viena

Em Viena há 27 castelos e mais de 150 palácios. Numa cidade com este fausto e espessura histórica ninguém vai pensar em vinhas. Mas elas existem nos campos que a circundam e até no seu interior. Viena, a imperial, é das poucas capitais do mundo onde se produz vinho, que se bebe jovem nos Heurigen, as típicas e familiares tabernas austríacas.

A cidade dá mesmo nome a uma das quatro principais zonas vitícolas do país, apesar de representar apenas um por cento da área plantada, que ascende a cerca de 46 mil hectares (mais ou menos a área do Douro). As outras são Weinland Österreich, que engloba os estados federados de Burgenland e Niederösterreich (Baixa Áustria), Steirerland, confinada à Estíria, e Bergland Österreich, que inclui os estados federados da Alta Áustria, Salzburgo, Caríntia, Tirol e Vorarlberg. Ficam todas no leste do país. A oeste, a paisagem montanhosa e o clima agreste não toleram a cultura da vinha.

Com os seus pouco mais de 600 hectares de vinha, a região de Viena é uma espécie de prelúdio turístico. Para se conhecer a Áustria vitícola que interessa verdadeiramente é preciso sair do perímetro da memória de Mozart e Strauss, dos legados imperiais dos Habsburgos, dos quadros de Klimt e Schiele, das igrejas e catedrais, e rumar até às margens do lago Neusiedle, do rio Danúbio e de alguns dos seus afluentes.

2. Lago Neusiedle, o reino dos vinhos doces

Na região de Burgenland, onde foram descobertos os vestígios mais antigos da produção de vinho na Áustria (700 anos antes de Cristo), os produtores de vinhos doces não precisam de estar atentos à evolução das uvas. Já sabem que o fungo Botrytis Cinerea (a chamada podridão nobre) ataca sempre. Só na região húngara de Tokajhegyalja, igualmente famosa pelos seus vinhos doces, acontece algo semelhante. A explicação está no clima quente e seco, influenciado desde sudeste pela grande planície da Panónia, e na humidade gerada pelas águas do lago Neusiedle, a praia da Áustria, com os seus 36 quilómetros de comprimento e, em alguns pontos, 12 quilómetros de largura.

A fama dos vinhos doces de Burgenland já vem de longe, ainda a região pertencia à Hungria (só passou a integrar a Áustria em 1921; com a II Guerra Mundial foi ocupada pelas tropas soviéticas e em 1956 voltou ao domínio austríaco). Mas sofreu um sério revés em 1985, quando se descobriu que um pequeno grupo de produtores enriquecia os seus vinhos doces com dietileno glicol, um anticongelante tóxico. O escândalo abalou o prestígio dos vinhos doces da Áustria, levando as autoridades a reformular o sistema de aprovação dos vinhos e a introduzir normas mais rígidas. Desde então, a qualidade dos vinhos austríacos nunca mais parou de subir, ao mesmo tempo que se foi instalando no país uma maior apetência pelos vinhos secos e ácidos. Mas em Burgenland são os vinhos doces que continuam a fazer a diferença, apesar de terem origem em vinhas que disputam os terrenos férteis e planos com milheirais e plantações de girassol.

Franz e Elisabeth Lentsch possuem 12 hectares de vinhas na zona de Podersdorf, a principal porta de entrada do lago, e representam o típico produtor austríaco: a estrutura é familiar, a adega está junto da casa e uma boa parte da produção é vendida à porta. Elisabeth fez as apresentações e introduziu os vinhos. Johanna Kern-Flois, enófila, negociante de vinhos, poetisa, cantora, performer e organizadora da viagem, leu poemas a exaltar os vinhos e as vinhas da terra. Repetiu o exercício ao longo de toda a viagem, declamando ou cantando canções nostálgicas escritas por si. Provaram-se vários brancos e tintos secos, mas o que ficou na memória foram dois vinhos doces: o Auslese Sämling 2008 e, ainda mais, o Trockenbeerenauslese Sämling 2008 (13 euros à porta da adega).

Auslese e Trockenbeerenauslese são dois dos seis tipos de vinhos doces austríacos que integram os chamados Prädktswein. Os outros quatro dão pelo nome de Spätlese, Eiswien, Beerenauslese e Ausbruck. Os Spätlese são os menos doces e não podem ter menos do que 94 gramas de açúcar por litro. OsTrockenbeerenauslese são os mais concentrados e intensos (em regra, são também os que possuem mais ácidos), só podem ser produzidos com uvas atacadas pela Botrytis Cinerea ou ressequidas e terão que ter, no mínimo, 154 gramas de açúcar residual.

Em Burgenland, são várias as castas com aptidão para vinhos doces. Uma delas é a Smäling, casta branca austríaca que tem na sua origem pré-filoxérica um cruzamento de Riesling com uma variedade selvagem desconhecida. Origina vinhos doces admiráveis, cheios de notas exóticas, cítricas e até tropicais, gordos e ao mesmo tempo refinadamente ácidos, como aqueles dois vinhos dos Lentsch.

3. Do moderno Toni Hartl ao clássico Feiler-Artinger

Toni Hartl, homem de quarenta e poucos anos que trocou um emprego público em Viena pela viticultura em Burgenland, não está bem nas antípodas dos Lentsch, mas quase. Convertido à agricultura biodinâmica, ele representa a face moderna e internacional da viticultura austríaca. As suas referências são, sobretudo, francesas, o que explica a aposta em castas como a Chardonnay, o Pinot Noir e a Syrah, a par de outras indígenas.

Os seus brancos e tintos secos seguem um perfil mais internacional, mesmo quando só recorre a castas locais, como a Blaufränkisch, a Zweigelt e a St. Laurent, mas surpreendem pela pureza, volume, estrutura e acidez bem balanceada. Belíssimo o seu tinto Inkognito. Também faz vinhos doces, alguns com castas improváveis, como o seu Beerenauslese Syrah 2006, uma raridade. Nesse ano, a Botrytis Cinerea até as uvas de Syrah atacou e Toni resolveu vinificar os cachos afectados. O vinho é surpreendente e tem o encanto de ser único. Não voltou a ser feito e não se sabe se voltarão a ocorrer as mesmas condições que permitiram fazê-lo em 2006.

As vinhas de Toni, situadas no sopé dos montes Leitha, já um pouco afastadas do lago Neusiedle, não ficam muito longe de Rust, a mais peculiar e pitoresca cidade vinícola de Burgenland. Um dos mais antigos produtores locais é Feiler-Artinger. Os seus brancos e tintos secos, de inspiração clássica, são muito procurados, porque vão ao encontro do gosto étnico. Os brancos cativam facilmente, os tintos são muito ríspidos, com taninos pungentes e enorme acidez. Bebidos socialmente, tornam-se quase repulsivos, mas com comidas substanciais podem ser surpreendentes. Em contrapartida, os seus vinhos doces podem levar-nos ao céu, como o soberbo Ruster Ausbruch Essenz 2006, que, como o próprio nome sugere, é pura essência (36 euros na adega).

4. Langenlois, o terroir da Grüner Veltliner

Langenlois é o centro da subregião de Kamptal, na Baixa Áustria. As vinhas crescem em redor da cidade, no meio da qual se ergue o fantástico Loisium, um museu-adega com vinoteca, hotel, spa e restaurante desenhado pelo americano Steven Holl. Fizemos lá uma bela refeição e provámos alguns vinhos encantadores, como um desconcertante Sauvignon Blanc (puro gaspacho, com efusivas notas de folha de tomate e pimento verde) e um belíssimo Roter Veltliner (Veltliner roxo), mais maduro e volumoso.

Em Langenlois há vinhas por todo o lado e cada encosta tem o seu nome e vocação. A mais famosa e cobiçada é a encosta de Eilingenstein ("Pedra Sagrada"), de solo granítico, que produz os melhores Riesling da região. Ao lado, fica a também exclusiva Gaisberg ("A montanha das cabras"), de onde vêm os melhores Grüner Veltliner da Áustria, vinhos muito minerais e apimentados, cuja qualidade e tipicidade tem origem nos solos finos e amarelados de loess, sedimentos formados pela erosão dos ventos, e no clima fresco da região.

A cultura de terroir está implantada em toda a Áustria, mas é quase levada ao extremo em Kamptal. Cada parcela de vinha origina um vinho próprio, o que explica que cada produtor comercialize dezenas de referências. A família Hiedler, um dos produtores de média dimensão de Langenlois e que produz magníficos Grüner Veltliner (a casta mais plantada na Áustria), é um deles. Guiados pela catalã Maria Angeles Castelhanos, esposa de Ludvig Hiedler, provámos alguns no terraço-jardim da adega, com vista para Langenlois e as vinhas circundantes, e deu para perceber que a quase obsessão pelos vinhos de parcela não é uma excentricidade.

5. Os gloriosos Riesling da "Pedra Sagrada"

O respeito pela identidade de cada vinha é igualmente visível na vizinha vinícola Bründlmayer, que produz e vende mais de 40 vinhos diferentes. Uma magnífica degustação conduzida por Thomas Klinger, o director comercial da empresa, deu-nos a conhecer belos tintos da casta St. Laurent (uma espécie de primo do Pinot Noir) e brancos assombrosos de Grüner Veltliner e Riesling.

A Bründlmayer é proprietária de 75 hectares de vinhas em Kamptal. Mas o seu verdadeiro tesouro está em Heiligenstein, onde possui 12 dos 36 hectares de vinhedos existentes naquela encosta. É de lá que vêm alguns dos seus melhores Riesling, vinhos muito minerais e com aromas delicados de citrinos, alperce e camomila.

Os Riesling secos de Bründlmayer são formidáveis, mas os doces não lhe ficam atrás. Um deles, um Trokenbeerenauslese da vinha Steinmassel de 2009 (considerada uma das melhores colheitas de sempre na Áustria), é a glória em forma de vinho. Com apenas 6 por cento de álcool e uma grande acidez, tem uma riqueza aromática e uma intensidade de sabor sem fim.

A viagem terminou com uma visita à cidade de Krems, classificada como Património Mundial e situada mesmo às portas da região de Wachau. Mas nem a beleza da sua arquitectura barroca provocou tamanho sobressalto sensorial como aquele Riesling, que tem tudo para ser eterno. Johanna agradeceu cantando uma ária de Mozart. O vinho merecia.

A Fugas viajou a convite da Embaixada da Áustria

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