Fugas - Vinhos

Nelson Garrido

Listas de vinhos e outras histórias

Por Rui Falcão

Porque teremos nós de pagar margens indecorosas sobre os vinhos consumidos nos restaurantes se o serviço prestado é, por regra, pouco informado? Porque terá de ser o vinho a pagar os custos de exploração da restauração?

Por muito que queiramos fugir dela, por muito tentador que seja imaginar que ela não existe, por muito que se suplique para que ela abale prontamente e de vez, a verdade é que a malfadada crise que nos acompanha desde há um par de anos existe... e está para durar. Os sintomas há muito que se adivinhavam, e os alertas sucessivos para a inevitabilidade da crise sucediam-se em inúmeros artigos de opinião subscritos por muitos dos mais prestigiados economistas, dentro e fora de fronteiras. Os sintomas de uma crise anunciada eram fáceis de prognosticar pelas infinitas manifestações de soberba e arrogância demonstrada por alguns dos principais actores económicos, muitos dos quais continuam hoje a ser poupados à crise... ou a operar como principais beneficiários do clima de especulação vigente.

Um capitalismo agreste e sem regras, aliado a uma crise de valores, conduziram muitos dos agentes financeiros a delírios consumistas sem fim, acenando com a notícia de que o fim estaria próximo. Basta atentar naquela que continua a ser considerada como a refeição mais cara de sempre, digna de constar do livro de recordes oficiosos do mundo, símbolo perfeito do tremendo desvario a que alguma banca especulativa chegou. Afinal, um simples almoço de negócios para sublimar mais uma operação bem sucedida na bolsa, mais uma operação financeira de luxo, juntou, há precisamente dez anos, à mesa do então glorificado restaurante londrino Pétrus, propriedade do muito mediático chef escocês Gordon Ramsey, seis executivos de sucesso da rede londrina do Barclays Capital.

Para celebrar o negócio acabado de ser rematado na bolsa londrina, os seis alegres convivas gastaram a imprudente quantia de 44.000 libras, o que, ao câmbio actual da libra, corresponderia a um pouco mais de 50.000 euros, ou, dividindo a conta por seis, a cerca de 8.300 euros por pessoa! Na verdade, a refeição em si, umas meras 360 libras no conjunto, acabou por ser presenteada pelo restaurante, tendo em conta o valor da factura. Em que foram então gastos as restantes 43.640 libras da refeição? Em vinhos, ou, mais rigorosamente, em cinco garrafas de vinho.

A assembleia começou por alinhar um Pétrus 1945, no valor de 11.600 libras, seguida por uma segunda garrafa de Pétrus, agora da colheita 1946, no valor mais módico de 9.400 libras. Dando sequência ao tema Pétrus decidiram-se logo em seguida por um dos vinhos mais icónicos do mundo, aquele que é mais ou menos universalmente aclamado com um dos melhores vinhos de sempre, embora muito poucos o tenham alguma vez provado, o Pétrus 1947, no valor de 12.300 libras. Com a garrafa subsequente retrocederam um pouco no tempo, reclamando um Château d"yquem 1900, um Sauternes, um vinho doce de sobremesa que sujeitou os seis executivos a uma despesa adicional de 9200 libras. Para terminar a refeição, elegeram um Montrachet 1982, uma opção de contenção tendo em conta o preço quase irrisório no contexto da refeição, umas meras 1400 libras! Sinais indecorosos que já auguravam os primeiros sintomas de crise, mas, pelo menos isso, um grupo que indicia algum bom gosto na escolha dos vinhos.

Claro que se fossem apreciadores sérios e não meros compiladores de rótulos, o destino escolhido teria, muito provavelmente, sido o paraíso terrestre dos reformados norte-americanos, o soalheiro estado da Florida, no extremo sul dos Estados Unidos da América. Porque é aqui que se arruma o restaurante Bern"s Steak House, uma simples casa de bifes como tantas outras nos Estados Unidos, um quase desconhecido fora da América... e um autêntico fenómeno dentro do país. Sim, o Bern"s Steak House é seguramente um restaurante muito menos erudito que o Pétrus londrino, limitando-se a servir carne de excelente qualidade, em preparações sóbrias e tradicionais, prestando um serviço amável e competente apesar de simples, sem nenhum dos cuidados e considerações dos restaurantes estrelados.

Mas em compensação acolhe aquela que é considerada a melhor carta de vinhos do mundo, facultando um número quase irreal de mais de 500.000 garrafas em stock permanente, estacionadas em diversas caves subterrâneas. Só a simples cave de dia, que traduz pouco mais de um quinto do total de existências, acomoda perto de 6500 referências únicas, prestando uma imagem perfeita da extensão desmesurada da lista de vinhos... que se estende por perto de 2500 páginas atestadas de nomes de vinhos, desde propostas simples e despretensiosas até referências históricas que nos fazem salivar de antecipação.

Diga-se que, numa lista que consagra a extravagância de prometer quase duzentos vinhos a copo, bem como alguns vinhos bordaleses do século XIX, e que mediante solicitação especial é visitável, figura um vinho português em absoluto destaque na lista, um Vinho da Madeira de 1792 que assegura a deferência de ser o vinho mais antigo na cave. Isto claro, para além das muitas outras referências nacionais em lista, entre vinhos da Madeira, Porto e vinhos de mesa, alguns deles servidos a copo.

E em Portugal, se um dia quiséssemos celebrar com extravagância o fim oficial da crise e o retorno aos tempos de bonança, onde nos deveríamos dirigir? Quantos restaurantes portugueses propõem cartas de vinhos faustosas, robustas e bem elaboradas? Quantos restaurantes nacionais decidiram alguma vez investir em listas de vinhos criteriosas e universais, acumulando vinhos sérios de vários pontos do mundo, mesmo que de origem e custos mais humildes? Quantos restaurantes se propõem comprar cedo e com critério, envelhecendo os vinhos em cave, proporcionando vinhos de colheitas mais antigas aos seus clientes? Na verdade, quantos restaurantes têm sequer o cuidado de oferecer listas de vinhos equilibradas, admitindo vinhos de todas as regiões nacionais, alargando-se para além dos eternos aspirantes Douro, Alentejo, Vinho Verde... e pouco mais? Quantos restaurantes têm sequer o cuidado de procurar vinhos que extravasem os nomes de produtores ou rótulos já consagrados, arriscando na procura de nomes de produtores, regiões ou castas menos conhecidas?

São poucos, muito poucos, os restaurantes que se preocupam em sancionar uma lista de vinhos séria e criteriosa. Mas são muitos, francamente muitos, os que se dispõem a praticar margens de comercialização indecorosas sem que à grandeza corresponda um serviço digno.

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