Por muito que queiramos fugir dela, por muito tentador que seja imaginar que ela não existe, por muito que se suplique para que ela abale prontamente e de vez, a verdade é que a malfadada crise que nos acompanha desde há um par de anos existe... e está para durar. Os sintomas há muito que se adivinhavam, e os alertas sucessivos para a inevitabilidade da crise sucediam-se em inúmeros artigos de opinião subscritos por muitos dos mais prestigiados economistas, dentro e fora de fronteiras. Os sintomas de uma crise anunciada eram fáceis de prognosticar pelas infinitas manifestações de soberba e arrogância demonstrada por alguns dos principais actores económicos, muitos dos quais continuam hoje a ser poupados à crise... ou a operar como principais beneficiários do clima de especulação vigente.
Um capitalismo agreste e sem regras, aliado a uma crise de valores, conduziram muitos dos agentes financeiros a delírios consumistas sem fim, acenando com a notícia de que o fim estaria próximo. Basta atentar naquela que continua a ser considerada como a refeição mais cara de sempre, digna de constar do livro de recordes oficiosos do mundo, símbolo perfeito do tremendo desvario a que alguma banca especulativa chegou. Afinal, um simples almoço de negócios para sublimar mais uma operação bem sucedida na bolsa, mais uma operação financeira de luxo, juntou, há precisamente dez anos, à mesa do então glorificado restaurante londrino Pétrus, propriedade do muito mediático chef escocês Gordon Ramsey, seis executivos de sucesso da rede londrina do Barclays Capital.
Para celebrar o negócio acabado de ser rematado na bolsa londrina, os seis alegres convivas gastaram a imprudente quantia de 44.000 libras, o que, ao câmbio actual da libra, corresponderia a um pouco mais de 50.000 euros, ou, dividindo a conta por seis, a cerca de 8.300 euros por pessoa! Na verdade, a refeição em si, umas meras 360 libras no conjunto, acabou por ser presenteada pelo restaurante, tendo em conta o valor da factura. Em que foram então gastos as restantes 43.640 libras da refeição? Em vinhos, ou, mais rigorosamente, em cinco garrafas de vinho.
A assembleia começou por alinhar um Pétrus 1945, no valor de 11.600 libras, seguida por uma segunda garrafa de Pétrus, agora da colheita 1946, no valor mais módico de 9.400 libras. Dando sequência ao tema Pétrus decidiram-se logo em seguida por um dos vinhos mais icónicos do mundo, aquele que é mais ou menos universalmente aclamado com um dos melhores vinhos de sempre, embora muito poucos o tenham alguma vez provado, o Pétrus 1947, no valor de 12.300 libras. Com a garrafa subsequente retrocederam um pouco no tempo, reclamando um Château d"yquem 1900, um Sauternes, um vinho doce de sobremesa que sujeitou os seis executivos a uma despesa adicional de 9200 libras. Para terminar a refeição, elegeram um Montrachet 1982, uma opção de contenção tendo em conta o preço quase irrisório no contexto da refeição, umas meras 1400 libras! Sinais indecorosos que já auguravam os primeiros sintomas de crise, mas, pelo menos isso, um grupo que indicia algum bom gosto na escolha dos vinhos.