Descobrimos que pequenas e aparentemente inócuas mudanças de paradigma técnico ou de percepção poderiam ser o rastilho para falências ou ajustes fortíssimos, e que nem mesmo as empresas mais sólidas ou os países mais robustos conseguem permanecer imunes à dinâmica da revolução que varre o mundo. Por vezes basta uma pequena evolução técnica, como a conversão da fotografia clássica em papel para a era digital, para desalojar do mapa empresas tão sólidas e seguras como a Kodak ou a Agfa, subitamente privadas de um modelo de negócio que pura e simplesmente terminou.
Nenhum sector da economia está hoje livre de uma revolução de práticas, costumes ou modelos. Nem mesmo o sector do vinho, tão conservador por natureza, tão alérgico a mudanças, tão respeitador das tradições. Até neste sector já nada é sagrado e tudo se modifica num ritmo vertiginoso. Mudam as preferências dos consumidores, mudam as castas da moda, mudam os estilos preferidos, mudam as regiões eleitas, mudam os países mais amados e diversificam-se os sítios no planeta onde se planta a vinha com sucesso. E sempre, sempre, com as mudanças a sucederam-se num ritmo frenético.
Repare-se nas voltas e reviravoltas ocorridas durante as duas últimas décadas. A Europa foi paulatinamente perdendo influência, desbaratando prestígio e quota de mercado, perdendo espaço para as novas potências do vinho, para países como a Austrália, Nova Zelândia, Chile e, embora numa escala diferente, para os Estados Unidos da América. No espaço de pouco mais de uma década a Austrália assumiu-se como a grande potência do mundo do vinho, definindo estilos e práticas, ganhando uma notoriedade singular, arrebatando o cobiçado lugar de país farol que todos se propõem imitar.
E de repente, sem aviso prévio e sem contemplações, a Austrália entrou em recessão técnica, incapaz de contrariar o enfado de tantos milhares de litros de vinhos iguais e sem oscilações entre colheitas, de vinhos perfeitos mas sem alma. Os problemas estenderam-se à Nova Zelândia... e o Chile parece querer seguir as pisadas falsas dos dois países dos antípodas. Como a natureza tem aversão ao vazio, logo a Argentina e a África do Sul se perfilaram para agarrar o papel de líderes da nova vaga, lugar que conservarão até que novas propostas alternativas se perfilhem no horizonte.
Candidatura que já começou a ser materializada pela China e Índia, dois dos principais aspirantes a ocupar o papel de next big thing. Sim, eu sei, por ora a ideia de bebermos vinhos chineses ou indianos parece algo descabida ou mesmo desfasada da realidade... mas poderá estar mais próxima do que o antecipado. Basta atentar que este ano, pela primeira vez, os supermercados Waitrose, uma das maiores cadeias de retalho de vinho em Inglaterra, decidiram introduzir vinhos indianos nas prateleiras, com destaque para um Viognier e um Syrah nascidos no vale de Sahyadri, em Maharashtra, a sul de Bombaim. Poderá até parecer pouco, mas convém não esquecer que também este ano, um Sauvignon Blanc indiano, elaborado na mesma região, conquistou uma medalha de prata no prestigiado e mais que ratificado concurso Decanter Wine Awards, uma estreia total para os vinhos indianos.
Porém, muito mais significativo do que a atribuição da medalha de prata indiana, foi a nomeação de um vinho chinês, o He Lan Qing Xue Jia Bei Lan 2009, como vencedor absoluto do troféu do melhor vinho de castas bordalesas na mesma competição, um facto tremendamente agitado pela imprensa especializada e generalista do mundo inteiro!
Talvez seja melhor colocar este feito em perspectiva. Um vinho chinês absolutamente desconhecido, firmado maioritariamente pelas castas Cabernet Sauvignon, com umas pinceladas de Merlot e Cabernet Gernicht (aparentemente uma casta muito próxima do Cabernet Franc), avaliado em prova cega por um painel de críticos prestigiados, foi classificado como o melhor vinho de castas bordalesas do mundo, na categoria "preço de venda acima de dez libras", a mais elevada dentro da família das castas bordalesas. Tudo isto, saliente-se, em competição directa com 506 vinhos bordaleses e outras centenas de vinhos provenientes de todos os cantos do mundo onde se usam estas castas. É como se, por absurdo, um vinho estilo Porto chinês tivesse conquistado o troféu de melhor vinho estilo Porto do mundo, em competição directa com centenas de rótulos de vinho do Porto!
Para rematar a surpresa, diga-se que nem só da China ou Índia chegaram as surpresas, com o Japão e a Tailândia a arrecadar, de forma imprevista, duas medalhas de prata por país. Na distribuição de troféus, Portugal ficou muito bem na fotografia, assegurando três das categorias principais em disputa, com os vinhos Bacalhôa Moscatel 2004 (melhor vinho fortificado doce a menos de dez libras), Henriques & Henriques 15 Anos Verdelho (melhor vinho fortificado doce acima das dez libras) e Tagus Creek Shiraz & Trincadeira 2010 (melhor vinho de lote a menos de dez libras).
Uma alegria que ainda assim não pode ser comparável ao agrado dos produtores argentinos quando descobriram que os vinhos do país das pampas tinham açambarcado seis das categorias em concurso, um recorde absoluto de triunfos para um só país, algo que nunca antes tinha sido experimentado nos Decanter Wine Awards. Em compensação, a Austrália limitou-se a ganhar dois dos troféus em causa, enquanto o Chile, o antigo menino bonito dos vinhos sul-americanos, não arrecadou um único troféu! Como diria Bob Dylan, the times they are a-changin"...