Fugas - Vinhos

  • Nelson Garrido

Brancos com alma de tintos

Por Pedro Garcias

No Verão branco, no Inverno tinto, certo? Errado. A cor dos vinhos já não precisa de andar a par com as estações. Para as comidas substanciais que o Inverno nos pede, cheias de calorias e gordura, há brancos encorpados e ácidos que podem fazer verdadeiros milagres.

Li de um brasileiro, povo exímio em sintetizar grandes ideias, que "não se toma picolé de vinho branco, nem quentão de vinho tinto". A sentença remete-nos para o erro frequente de servirmos os vinhos brancos frescos de mais e os tintos demasiado quentes.

Nem os brancos devem ser gelados, porque abaixo de 8 graus centígrados as qualidades dos vinhos são anuladas, nem os tintos devem ultrapassar os 18 graus; e depende do vinho, porque um tinto jovem e leve não deve passar dos 14º C. Ora, se soubermos servir os vinhos à temperatura correcta, já não faz tanto sentido a velha ideia de que os brancos são para o Verão e os tintos para o Inverno.

Normalmente, bebemos o que o corpo nos pede. No Verão, quando o calor aperta, pensamos em bebidas frescas e leves, no Inverno queremos algo mais quente e encorpado. E é sobretudo por isso que a cor dos vinhos anda a par das estações. Mas não há razão para seguirmos esse determinismo, porque há cada vez mais tintos com aptidões estivais, para se beberem frescos, e brancos que requerem temperaturas mais altas e o aconchego de uma lareira ou de uma mesa substancial. São os chamados brancos de Inverno, vinhos com alma de tintos.

Chamamos brancos de Inverno aos vinhos encorpados, de grau alcoólico generoso e normalmente fermentados e estagiados em madeira. A classificação não tem que ser rigorosa. Há brancos leves e sem madeira que fazem grande figura à mesa durante a estação fria. De qualquer modo, os vinhos mais robustos e com maior teor alcoólico encaixam-se melhor nos condicionalismos térmicos do Inverno. O álcool ajuda a aquecer os corpos.

Quando os dias arrefecem, passamos a comer coisas mais pesadas, gordas e proteicas, damos preferência à carne, regressamos às sopas e ao feijão, empanturramo-nos de castanhas, redescobrimos os queijos e não resistimos ao chocolate e aos frutos secos. Na época dos excessos, bebemos também mais e preferimos os vinhos de maior volume alcoólico - e esses são normalmente tintos.

O quase monopólio dos tintos no Inverno é, sobretudo, de ordem química. O frio pede-nos comidas e bebidas mais quentes, razão pela qual o consumo de vinhos mais alcoólicos, incluindo os vinhos fortificados como o Porto, dispara nesta estação. E não são só os brancos que perdem terreno. Os tintos leves também ficam esquecidos na prateleira.

Tenderemos a beber sempre mais tinto no Inverno, mas não temos que cair na fatalidade de beber só tinto. É verdade que, durante muito tempo, não havia em Portugal muitos vinhos brancos para nos alegrar os dias gelados. Porém, nos últimos anos, os brancos nacionais deram um salto colossal, respondendo ao avanço da nossa vitivinicultura e à procura dos consumidores.

O mercado pede cada vez mais vinhos leves e frescos, para serem bebidos novos, pelo que a tendência tem privilegiado os vinhos fermentados e estagiados em inox. Há vinhos que não precisam de passar pela madeira para serem enormes e complexos. Basta pensar em alguns vinhos verdes.

Mas, em geral, os grandes vinhos brancos, aqueles que podem durar décadas, precisam do conforto e do afinamento da madeira. O estágio em barrica dá-lhes complexidade e estrutura, enriquece-os e prepara-os para novos desafios gastronómicos, desde que possuam uma boa acidez natural.

Acidez é a palavra-chave para qualquer vinho, em particular para um vinho branco e mais ainda para um branco de grande porte. Vinhos com 13 ou 14% de álcool, fermentados e estagiados em barrica, não são necessariamente bons brancos de Inverno. Se não forem equilibrados e não possuírem mineralidade e acidez bastante para acomodar o álcool e a influência da madeira, serão sempre vinhos pesados em qualquer estação do ano.

Quando são encorpados, calorosos, intensos, profundos e refinadamente frescos, então podem fazer verdadeiros milagres numa mesa de Inverno. Porque vinhos assim resolvem dois problemas essenciais: suportam e valorizam comidas mais substanciais e ainda ajudam a atenuar o seu peso, pelo menos de forma sensorial. Colam-se bem à gordura e às proteínas, exaltam os sabores mais delicados e ainda refrescam e limpam o palato. São vinhos com o seu quê de alquimistas. O que mais podemos desejar, além de uma boa companhia e, já agora, uma lareira por perto?


Brancos com aptidão gastronómica para as receitas da estação

Nas combinações entre comida e vinho, a melhor regra é não ficar preso a dogmas, do tipo "tinto para carne, branco para peixe". Mas, se quisermos ser exigentes, devemos avaliar a densidade, o peso calórico, a textura e a composição do prato e pensar num vinho que possa valorizá-lo ou, pelo menos, estar à sua altura. E um princípio seguro é ter sempre presente que uma comida poderosa requer um vinho igualmente poderoso.

Só que um vinho potente tanto pode ser branco como tinto ou até mesmo fortificado. E pode dar-se o caso de uma comida potente casar bem com diferentes vinhos potentes. A sabedoria, o segredo, é fazer a escolha certa - tarefa nem sempre fácil.

Qual é então a aptidão gastronómica de um branco de Inverno? Uma pequena e recente experiência caseira abriu-nos algumas pistas. Com um arroz de troncha, moura e costeletinhas de porco e ainda, num prato à parte, coelho estufado em vinho tinto, bebemos o Anselmo Mendes Alvarinho Curtimenta 2009 (com 13% de álcool) e o Quinta do Pinto Grande Escolha 2009 (com 12% de álcool e estágio em barrica).

O primeiro encaixou como íman na comida, o segundo, apesar de ser menos alcoólico e mais seco, não criou qualquer harmonia e tornou-se até demasiado pesado. O Alvarinho Curtimenta funcionou melhor porque, além de mais encorpado, possui uma maior mineralidade e acidez, necessárias para fazer face ao molho espesso do coelho e à gordura da carne e dos enchidos do arroz de troncha. Um vinho como o Quinta do Pinto, feito de Viognier, Marsanne e Roussanne, castas típicas da região francesa de Côtes du Rhône, poderá casar melhor com comidas mais sofisticadas, ricas em especiarias, ou com certos pratos de caça, por exemplo.

Resumindo: comidas fortes e gordurosas, como estufados de carnes e cogumelos, polvo à lagareiro, cabrito no forno, cozido à portuguesa ou bacalhau assado ou cozido bem regado a azeite, requerem vinhos encorpados mas com muito boa acidez. E, embora os tintos carnudos e estruturados sejam opções óbvias, porque os seus taninos se "colam" à gordura, os brancos de bom porte e, ao mesmo tempo, frescos e vivos podem ser perfeitos.

Também costumamos recorrer a um tinto ou a um vinho fortificado quando comemos queijo, mas há brancos de Inverno, volumosos e com madeira, que proporcionam ligações exaltantes, sobretudo se o queijo tiver sabor forte e pasta mole. Como o Serra da Estrela, por exemplo. Do mesmo modo, os brancos vão bem com gratinados e com sopas e caldeiradas de peixe e podem ser uma surpresa muito agradável a acompanhar massas com molho de tomate, por exemplo, porque a acidez do tomate é bem absorvida pela acidez do vinho.

Há ainda um outro grupo de alimentos que vai bem com brancos de Inverno: os frutos secos, tão típicos da estação. Um Porto branco seco ou um Tawny também são boas companhias, porque são vinhos que desenvolvem aromas e sabores semelhantes. E uma boa harmonização tem como premissa essencial a similaridade. Mas há certos vinhos brancos com estágio em madeira ou já com alguns anos de idade que oferecem o mesmo, combinando bem com nozes, avelãs ou amêndoas (servidas como aperitivo ou integrando o prato principal). Têm é que ser vinhos secos, ou seja, sem doçura de boca, e com uma boa acidez.

Vinhos deste perfil também acompanham bem castanhas cozidas condimentadas com erva-doce. Se as castanhas forem assadas, aí não há dúvidas: o melhor mesmo é uma boa jeropiga.


Cinco brancos para o Inverno

Alves de Sousa Reserva Pessoal 2004

Um dos mais originais e ousados vinhos brancos portugueses. Feito de vinhas velhas, com predomínio das castas Malvasia Fina, Gouveio e Viosinho, foi sujeito a uma maceração prolongada e a remontagens com arejamento, o que provocou uma hiper-oxidação do mosto. Tudo ao contrário do que a enologia defende para os vinhos brancos. Fermentou e estagiou 12 meses em barricas novas de carvalho francês.

Não é um vinho fácil. Ou se adora ou se detesta. Mas mesmo aqueles que mostram um desagrado imediato devem dar-lhe o benefício da dúvida e esperar um pouco, pois com o tempo no copo o vinho mostra qualidades inesperadas, revelando uma complexidade, estrutura e profundidade admiráveis. As notas de oxidação/evolução diluem-se um pouco e, ao de cima, vêm as fragrâncias florais e exóticas e os frutos cristalizados de boa acidez. É um vinho seco e de final longo e fresco, ideal para acompanhar queijos de pasta mole e bacalhau assado, por exemplo. Deve ser servido entre os 12 e os 14 graus.

Quinta da Gaivosa
Santa Marta de Penaguião
Graduação: 12,5% vol
Região: Douro
Preço: 20€

 

Anselmo Mendes Alvarinho Curtimenta 2009

Este não é um Alvarinho directo, intenso e exuberante de fruta, é um vinho de memórias, de aromas e sabores mais delicados e complexos, feito num registo que evoca o modo antigo de vinificar mas moderno na tecnologia utilizada e no resultado final. Anselmo Mendes deixa fermentar o mostro durante um ou dois dias em contacto com as películas, leva-o de seguida à prensa e termina a fermentação em barricas de 225 litros usadas, onde o vinho estagia sobre as borras totais durante seis meses.

É um Alvarinho sedoso e com corpo, elegante do princípio ao fim e que revela uma complexidade aromática e uma finesse e frescura de boca formidáveis. A madeira pressente-se mais do que se sente, não ofuscando minimamente o carácter mineral do vinho. A curtimenta deu-lhe robustez, essencial para enfrentar uma mesa de Inverno, mas o seu traço distintivo é a frescura de boca, sem hiatos, a acidez viva que deixa o palato em êxtase. Por ser um vinho muito fresco, vai bem com pratos fortes de carne e peixe. Experimente-o com um assado de carne ou uma feijoada e verá como responde à altura.

Anselmo Mendes
Melgaço
Graduação: 13% vol
Região: Vinhos Verdes
Preço: 22€


Quinta das Bágeiras Garrafeira 2009

Mário Nuno Sérgio não é dos produtores da Bairrada mais conhecidos dos portugueses. Mas o proprietário da Quinta das Bágeiras, bem assessorado pelo enólogo Rui Moura Alves, faz alguns dos melhores vinhos nacionais, e a preços extraordinários. O seu Garrafeira tinto, feito de Baga de vinhas muito velhas, é um grande vinho em qualquer parte do mundo. E o seu Garrafeira branco também não lhe fica atrás.

Se há brancos indicados para o Inverno, este é um deles. Vale a pena recordar o que já se escreveu aqui sobre o vinho. " É bastante maduro, só que possui uma acidez fantástica que lhe dá nervo, intensidade e comprimento. A madeira acrescentou-lhe complexidade e estrutura, mas revela-se de forma discreta, deixando sobressair a faceta mineral e química do vinho. No seu peculiar jogo de contra-pesos, este Garrafeira 2009 é o exemplo perfeito do equilíbrio num vinho. Equilíbrio, não perfeição.

Haverá, por exemplo, quem não aprecie os aromas ligeiramente evoluídos que caracterizam este vinho. Mas aí já estamos a entrar no campo da subjectividade. Esse é o estilo Bágeiras e, embora não seja consensual, tem cada vez mais apreciadores. Com este branco, Mário Sérgio volta a fazer a diferença e a um preço imbatível". Já passou quase meio ano desde esta nota de prova e o vinho está cada vez melhor. Com uma caldeirada de peixe bem puxada, foi, juntamente com o Anselmo Mendes Alvarinho Curtimenta, o vinho que melhor impressão deixou dos cincos que aqui destacamos.

Quinta das Bágeiras
Anadia
Graduação: 14,5% vol
Região: Bairrada
Preço: 11€


Paços dos Cunhas de Santar Vinha do Contador 2009

A começar pela garrafa, uma Borgonha pesada e nobre, este é um branco imponente, tipicamente de Inverno, um lote de várias castas com predomínio do Encruzado, a variedade portuguesa que talvez se ajuste melhor à influência da madeira. Já existe a colheita de 2010, mas o 2009 está mais afinado. As notas tostadas e fumadas ainda continuam um pouco salientes, mas são notas de barrica de grande qualidade e estão bem suportadas pelo álcool (14%) e a acidez do vinho.

É muito encorpado e gordo na boca e, se for servido à temperatura certa, proporciona uma prova muito equilibrada e gostosa, porque possui boa acidez. Demasiado fresco, perde graça, com um grau a mais fica muito pesado. O ideal é decantá-lo e servi-lo entre os 12 e os 14 graus. No ponto certo, percebe-se que estamos perante um grande vinho do Dão, austero e impositivo, com um aroma onde as notas quentes da madeira se casam muito bem com as nuances frescas da fruta limonada, igualmente presentes na boca sedosa e cheia. Pode ser uma excelente companhia para um bacalhau assado ou cozido.

Dão sul
Nelas
Graduação: 14% vol
Região: Dão
Preço: 20€


Pêra-Manca 2009

Elegância, complexidade, equilíbrio. Um clássico do Alentejo com fama de lenda (mais o tinto) no Brasil e que, a avaliar pelas colheitas anteriores, possui uma grande longevidade, mostrando que para envelhecer bem não é necessário nascer "uma bomba". É um vinho com proporção que combina muito bem a frescura do Arinto com a fruta perfumada do Antão Vaz, o álcool com a acidez e a madeira. Por ter fermentado só parcialmente em barrica, tem a madeira certa que se requer a um vinho com 13,5% de álcool. Mais, poderia torná-lo demasiado pesado. Como está, ressuma delicadeza no aroma, onde predomina a componente cítrica da fruta. Envolve a boca de fruta e de notas fumadas, num registo muito macio e elegante. É seco e fresco e possui um bom corpo que o recomenda tanto para comidas mais delicadas como para outras mais fortes, tipo polvo à lagareiro.

Fundação Eugénio de Almeida
Évora
Graduação: 13,5%

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