A discórdia entre os dois estilos é longa, com raízes históricas e filosóficas, instituindo dois mundos distanciados entre si, duas famílias com poucos pontos de contacto. Enquanto os primeiros, os Tawnies, são sujeitos a uma evolução em barrica, em ambiente oxidativo, os segundos, os vinhos Ruby, dependem de uma evolução em garrafa, em ambiente redutor, arredados das graças do oxigénio.
Uma diferença aparentemente pequena mas tão sólida que acabou por obrigar a uma especialização em cada um dos estilos, dividindo o universo do Vinho do Porto entre as casas dedicadas maioritariamente à causa dos Tawny e as casas mais devotas à escola dos vinhos Ruby, separando deste modo o Vinho do Porto entre casas de génese portuguesa e casas de matriz inglesa. Há muito a separar estes dois mundos, desde o modelo de envelhecimento até à filosofia, desde a preponderância da vinha até à supremacia da adega, desde a importância do enólogo à autoridade do provador, desde o Douro até Gaia.
Historicamente, têm sido os produtores de inspiração inglesa a apostar e a comandar o mercado dos vinhos de estilo Ruby, sobretudo nas duas classes reinantes, LBV e Vintage. Vinhos de um só ano, de uma colheita, de engarrafamento precoce, obrigatoriamente engarrafados entre o segundo e o terceiro ano, no caso dos Vintage, e entre o quarto e o sexto ano no caso dos LBV. Pelo contrário, têm sido as casas de génese portuguesa a privilegiar os vinhos de estilo Tawny, dominando as duas classes reinantes, os vinhos com indicação de idade e os Colheita. Vinhos de uma só colheita, tal como os Vintage, passíveis de serem engarrafados após sete anos de estágio em pipa... embora por regra só sejam engarrafados após um longo tirocínio nos armazéns de Gaia, muitas vezes ao fim de 20, 40, 60 ou 100 anos de estágio.
Claro que os encargos financeiros de despachar um vinho ao fim de dois anos ou após sessenta anos de estágio não poderão nunca ser comparáveis, obrigando a custos e investimentos desiguais. Entre os vinhos de estilo Tawny, são os Colheita que mais se destacam. Vinhos de um só ano, retratos fiéis de uma colheita, sem maquilhagem, espelho fiel da generosidade e intransigência da natureza. Vinhos de lote de diferentes parcelas mas de um só ano, obrigando a jogar com os argumentos e predicados que a natureza consagrou nessa colheita.
Vinhos de evolução lenta, de evaporação contínua, que necessitam ser periodicamente atestados com vinhos da mesma colheita, repondo o volume entretanto perdido. Por beneficiarem de um estágio tão prolongado em pipas de madeira velha, em ambiente profundamente oxidativo, os Colheita vão gradualmente perdendo a cor, adquirindo tons acobreados e aromas terciários de frutos secos e especiarias, ampliando a doçura, proporcionando vinhos ainda mais complexos, untuosos e suaves.
Depois de engarrafados os Porto Colheita pouco evoluem, ganhando alguns aromas de garrafa após décadas de aprisionamento, sustentando um percurso evolucionário gradual mas muito lento. É o estágio em madeira que permite o desenvolvimento do vinho. Por isso as regras do bom senso, bem como a legislação, impõem a menção de duas datas no contra rótulo dos Colheita, o ano de vindima e a data de engarrafamento, informações essenciais para a percepção de um Porto Colheita, já que o mesmo vinho poderá ter sido engarrafado em diversas datas, digamos que com 10, 40, 70 ou 100 anos de estágio em cascaria, oferecendo vinhos com perfis que em tudo se diferenciam.
Não é fácil fazer bons Colheita. Trabalhar com os Porto Colheita obriga a um rigor e a uma precisão dificilmente quantificáveis. Aqui a arte do lote acaba por não ser menos preponderante que nos outros ramos da família dos tawnies. Por estar limitado a uma só colheita, por depender da excelência de um vinho base que terá obrigatoriamente de ser absolutamente extraordinário, as opções do enólogo são muito mais limitadas. Só os atestos e correcções de aguardente, os arejamentos e as trasfegas podem servir como armas na elaboração dos Colheita, vinhos que simbolizam o triunfo do homem sobre a natureza, a vitória do iluminismo e da razão sobre o desígnio da natureza.
As casas que se destacam
Saber desenhar, educar e executar um Porto Colheita é uma tarefa delicada que exige experiência, tempo e sensibilidade, não estando ao alcance de todos. São raras, muito raras, as casas que sobressaem no estilo, e ainda mais raras as que se especializaram nesta vertente tão ingrata do Vinho do Porto. Todas elas, apesar dos muitos nomes estrangeirados relativos às famílias que as fundaram, são de matriz portuguesa, de vivência, inspiração e criação nacional, como que a confirmar a predilecção lusitana por este estilo de vinhos.
Os Colheita precisam de carinho, precisam de receber mimos e afectos. Precisam de paciência e saber. São milhões de litros em suave repouso, em lento envelhecimento, com milhares de pipas espalhadas e acarinhadas pelo conforto e frescura das caves de Gaia. Representam centenas de colheitas em saboroso descanso, vinhos de todas as idades e décadas, provenientes de todos os recantos do Douro. Trabalhar com estas pipas, trabalhar com os velhos Colheita obriga a um rigor e uma precisão dificilmente quantificáveis. A arte do lote de pouco serve nos velhos Colheita. Se o vinho base não for notável, excepcional em todos os sentidos, o envelhecimento, longe de lhe poder acrescentar virtudes, só fará sobressair os vícios originais.
Talvez por isso a maioria das casas especializadas em Porto Colheita sejam casas pequenas, dedicadas quase por inteiro à causa, com um traquejo e experiência que costuma atravessar muitas gerações. Só assim se poderão apresentar Portos Colheita que se mantenham frescos e radiosos, sem aquela que é a maior adversidade do estilo, os vinhos cansados e já decadentes.
De entre as poucas casas que se dedicam de corpo e alma aos Porto Colheita, Wiese & Krohn, Burmester, Andresen, Dalva, Kopke e Poças são as que sobressaem, as que melhor interpretam o estilo intemporal dos Porto Colheita, as que lhes conhecem os truques e desafios. Em todas estas casas um simples passeio pelos velhos armazéns frescos e silenciosos consegue proporcionar momentos de raro prazer, deambulando por entre as pipas repletas de vinhos velhos, vinhos vivos e em evolução, velhos cascos dispostos numa espécie de caos controlado, atestadas de tesouros que o tempo e o homem irão afinar.
Cinco Colheita que valem a pena
Quevedo Colheita 1994
Os Porto Colheita nem sempre vêm de Gaia, nem sempre nascem de casas centenares, com uma história longa e faustosa. Este, por exemplo, nasce e envelhece no Douro, de um produtor jovem e relativamente recente, provando que os Colheita podem ser uma alternativa viável, mesmo para um produtor sem o pedigree de outras casas. Os vinhos do Porto da Quevedo são interessantes, alegres e prazenteiros, num estilo mais fresco e jovial, vinhos descomprometidos que apetece voltar a beber. Este Colheita de 1994 revela uma cor discretamente acastanhada, ainda algo avermelhada e reservada. Percebe-se uma frescura generosa, com a fruta ainda muito presente, perceptível por todos os recantos aromáticos. Elegante e preciso, agradável e fresco, destoa apenas no remate final demasiado abrupto que corta ligeiramente o final de boca. Um Colheita bem engraçado de um pequeno produtor do Douro.
Andresen Colheita 1980
Apesar de já ter passado o século de fundação, a Andresen continua a ser uma das casas de Vinho do Porto mais recatadas, uma quase desconhecida pelos enófilos nacionais, preferindo manter uma posição low-profile de que não quer abdicar. É incontestavelmente uma das casas soberanas nos Porto Colheita, estilo que ministra como poucos, consagrando vinhos jovens e irreverentes, sérios, complexos e tremendamente frescos. O Andresen proposto, o Colheita 1980, desvenda uma tonalidade ambarina escura, temperada por reflexos de cor mogno. Elegante nas notas fumadas de pão torrado, manifesta, inesperadamente, leves sensações lácteas, acompanhadas por notas de frutos secos, muito pinhão e avelã, guarnecidos por sugestões de café. Complexo, profundo e desafogado, levemente fumado, arrebata pela frescura intensa, quando a acidez prevalece sobre a doçura do final de boca, aclamando um vinho tenso mas sedutor.
Burmester Colheita 1960
Dentro do universo das casas grandes, de volume já considerável, a Burmester é a grande especialista nos vinhos do Porto da família Tawny, acarinhando com especial empenho os Porto Colheita, como tão bem o demonstra este magnífico Burmester Colheita 1960. É um Porto extraordinário na riqueza e diversidade aromática, mostrando-se opulento e perfumado, complexo, fresco e enorme no comprimento do final de boca. Viçoso no mel e nas notas tostadas, exuberante no café, animado nas sugestões especiadas de cravinho e cardamomo, termina guarnecido por uma leve sensação aromática de avelã. Profundo e rico, untuoso mas fresco, ligeiramente citrino, quase caramelizado, propicia um final de boca longo e vibrante, retesado e repleto de energia e confiança!
Dalva Golden White Colheita 1952
A Dalva produz todos os tipos de Porto. Mas são os Tawnies que constituem o forte da casa, mostrando-se acertados, ajuizados, seguros e sensatos. Por vezes, podem mesmo ser excepcionais. É o caso dos Golden White Colheita 1952 e 1963, grandiosos na harmonia, sedução e assombrosa frescura que exibem. Cor ambarina pronunciada, impossível de diferenciar na cor de um Colheita Tawny envelhecido. Fresco e luxuriante, discretamente floral, delicado e sedutor, cativante e encantador, é fácil simpatizar com este Colheita branco. Mas é a boca que anuncia a entrada no céu, com uma onda de frescura avassaladora e uma acidez brutal que o eterniza na boca, com uma harmonia e equilíbrio notáveis, uma irrequietude e jovialidade fascinantes.
Wiese & Krohn Colheita 1978
A Wiese & Krohn é um dos raros produtores boutique, um pequeníssimo produtor que se especializou no segmento tão particular dos Porto Colheita, um produtor de nicho inteiramente dedicado ao segmento alto do mercado. É um dos grandes especialistas dos Tawnies, um ultra especialista no estilo Colheita. É essa a grande singularidade da casa, os vinhos do Porto Colheita, elaborados num estilo pouco comum, capazes de manter uma frescura tremenda. Este, de 1978, revela cor ambarina intensa, de matriz quase acobreada. O nariz surge especialmente elegante com sinais evidentes de raspas de laranja cristalizada, muito café, tostados, cravinho, iodo e um toque muito discreto de vinagrinho. Impressiona pelo volume gigante e pela sem-cerimónia, pela potência e complexidade. Amplo, fresco, vigoroso, termina muito mais viçoso e luxuriante do que a idade poderia fazer adivinhar. Enorme!