Fugas - Vinhos

Mário Augusto Carneiro

Opinião: Estamos num ano de seca, altura ideal para discutir a rega no Douro

Por David Guimaraens

David Guimaraens, enólogo da Fladgate Partnership, defende que "utilizar a rega da vinha, no Douro, é um erro e que a proibição actual de o fazer se deve manter", sublinhando, aliás, que "é pena que esta lei seja completamente ignorada".

Estamos, na região do Douro, novamente com a necessidade de nos reinventarmos. 

A Região Demarcada do Douro é, de longe, uma das mais belas e mais complexas regiões vitícolas do mundo, com uma viticultura e uma enologia até há pouco tempo maioritariamente empíricas, ligadas às condicionantes de uma viticultura de montanha em clima quente. Nos últimos 30 anos, as alterações profundas de Portugal levaram à necessidade de mudar a viticultura e a enologia tradicionais da região, procurando, através de métodos mais modernos, reduzir a intensidade de mão-de-obra de que as vinhas tradicionais e os lagares de vinificação dependiam.

Assistimos ao desenvolvimento de novos modelos de vinha com inovações a nível mundial e uma enologia tão de ponta como noutras regiões do novo mundo.

Redescobriram-se as castas autóctones da região e destacaram-se algumas delas, como a Touriga Nacional, que passou a ser respeitada e utilizada internacionalmente. O último século está integralmente ligado ao vinho do Porto mas, nos últimos 20 anos, também a um conjunto de vinhos de mesa com uma qualidade igual aos melhores das melhores regiões mundiais.

A inovação tem tanto de louvar como de importante; no entanto, corremos o risco de esquecer o que o passado nos ensinou. Refiro-me a dois exemplos: a rega da vinha e o abandono da complexidade das castas da região. 

Faço parte de um número muito limitado de pessoas que considera que utilizar a rega da vinha, no Douro, é um erro e que a proibição actual de o fazer se deve manter (é pena que esta lei seja completamente ignorada!). 

Este é o momento ideal para se discutir este tema: num ano preocupante de seca torna-se mais fácil para os apologistas da rega da vinha tentarem convencer os legisladores a alterarem a sua proibição. Eis os meus argumentos contra a rega da vinha:

1. A vinha existe, no Douro, há mais de 300 anos, com intensidade, com sucesso e sem ser regada. Porquê começar agora, no momento em que o mundo percebe que a água é um recurso escasso, a regar as vinhas? Basta olhar para o rio Douro, no Verão, para percebermos a gravidade de extrair água para regar 45 mil hectares de vinha!

2. A maior área de vinha, no Douro, sempre se concentrou no Baixo Corgo (Régua) e no Cima Corgo (Pinhão). A migração para o Douro Superior é recente e devemo-nos questionar porquê ir para regiões extremamente secas e quentes quando estamos tão preocupados com as alterações climáticas e, ainda por cima, quando se está a privilegiar, nessa migração para o Douro Superior, a produção de vinhos de mesa.

3. Se analisarmos a distribuição de vinha no terreno vemos que, quanto mais se entra no Douro Superior, mais se nota a preocupação que os viticultores antigos tinham de só plantar vinhas nos melhores terrenos. Hoje, com a vontade de plantar grandes extensões contínuas de vinha, estão-se a plantar terrenos que não a suportam, daí a necessidade de usar a rega para a fazer sobreviver.

4. A plantação de um menor número de castas, em blocos individualizados, potencia a sensibilidade individual de algumas à secura. As vinhas tradicionais eram plantadas com uma mistura de várias castas, pelo que o comportamento individual de cada casta era atenuado. Nos blocos individuais é muito mais difícil aceitar o "castigo" que uma casta possa sofrer em alguns anos.

5. As castas do Douro têm comportamentos diferentes em cada ano. Os antigos compreendiam isso, utilizando várias castas em cada vinha, garantindo assim uma consistência de qualidade ao longo dos anos. Hoje, com a vontade de fazer vinhos monocasta, perdeu-se essa grande virtude. 

6. Hoje não há paciência. Quer-se plantar uma vinha hoje e em três anos produzir um grande vinho! Uma vinha leva um mínimo de 10 anos até se estabelecer, até ao ponto de produzir um grande vinho. Até lá, a videira é muito mais variável na qualidade que produz e muito menos tolerante a anos quentes e secos. No entanto, é nesses anos quentes e secos que a videira é forçada a desenvolver as suas raízes para baixo, para que no futuro tenha mais resistência; isso acontece à custa de sacrificar a qualidade das uvas nestes anos. O recurso à rega atenua essas dificuldades nestes anos extremos mas impede a videira de se esforçar para desenvolver as suas raízes para baixo. Esta videira torna-se dependente da rega. 

Na Fugas de 10 de Março passado há um artigo excelente sobre um grande senhor do vinho, pelo qual tenho um enorme respeito e consideração, Fernando Guedes. No magnífico vinho que ele apresentou, o Legado Tinto 2008, está uma grande lição. Este vinho é produzido de vinhas muito velhas da Quinta do Caedo, junto a Ervedosa do Douro, no Cima Corgo. Esta vinha está plantada com uma mistura de castas e nunca foi regada.

Somando a este, temos o exemplo de todos os grandes vinhos tintos do Douro, que tanto sucesso têm tido em Portugal e internacionalmente, como os de Dirk Niepoort, que liderou nesta nova vaga todas as emblemáticas vinhas velhas da Quinta do Crasto, e muitos outros feitos de vinhas velhas, com uma variada mistura de castas do Douro e sem rega.

No Vinho do Porto não se pode aceitar a utilização da rega das vinhas - temos 300 anos de grandes vinhos do Porto sem nunca ter havido rega.

Talvez se torne incómodo denunciar o que agora acontece no Douro, com a mesma vinha a poder produzir Vinho do Porto e vinhos do Douro. É a vontade de regar as vinhas para produzir vinhos de mesa que está a levar os intervenientes a querer legalizar a rega de todas as vinhas do Douro, incluindo as que produzem uvas para Vinho do Porto, que não precisa e não quer a rega da vinha. Precisa é que a nova geração de produtores se interesse por ele e que os consumidores portugueses passem a ser consumidores regulares deste vinho único. 

Se o Douro quer reinventar-se com os vinhos de mesa, é necessário rever as regras do "benefício" das vinhas, e não deixar que estas, criadas há 80 anos, quando a região só comercializava Vinho do Porto, seja a causa da queda deste vinho e em consequência dos viticultores do Douro e dos comerciantes de Vinho do Porto. 

Enólogo da Fladgate Partnership

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