Christian Seely chegou a Portugal no final da vindima de 1993, com a missão de reerguer a histórica Quinta do Noval, acabada de comprar pela seguradora Axa. A viagem de carro desde o Porto até ao Pinhão demorou quase cinco horas. Sem saber uma palavra de português, perdeu-se várias vezes pelo caminho. Quando chegou à quinta, pediu a António Agrellos, o enólogo da casa e seu braço direito, que lhe escrevesse em português um pequeno discurso de apresentação aos funcionários.
Seely leu-o sem entender nada do que lia e ainda hoje tem dúvidas de que os funcionários também tenham entendido alguma coisa. Mas devem ter apreciado o gesto, porque lhe bateram muitas palmas e lhe ofereceram flores. A colheita, essa, foi uma das piores do século no Douro. Em contrapartida, a do ano seguinte foi uma das melhores. A sorte esteve do lado de Seely, que soube aproveitar a oportunidade: reduziu o número de caixas e com as melhores uvas fez uma pequena quantidade de um grande Porto Vintage. Depois de mais de uma década a produzir vinhos decepcionantes, a velha e lendária Noval estava de volta.
Vinte anos depois, qual foi a sua principal contribuição para a Noval?
Isso não é o mais importante. Vindo de fora, tive uma visão externa do que era a Quinta do Noval, do seu potencial e do que precisava. Eu sabia que esta propriedade tinha um dos grandes terrenos de vinho do mundo inteiro, eu conhecia os seus grandes vinhos do passado, o Porto Vintage 1931, o 45, o 55, o 66. Eu sabia que a Noval era capaz de fazer coisas grandes. Creio que a minha principal contribuição foi ter esta visão do potencial da Noval e o desejo de que a Noval voltasse a fazer a grandes vinhos como no passado. Durante os anos 70 e 80 do século XX, a Noval fez bons vinhos mas não com a mesma grandeza do passado. Eu queria que os vinhos da Noval voltassem a ter essa grandeza.
E conseguiu isso?
Talvez. Eu trabalho com muitas outras propriedades, em Bordéus, na Borgonha, e o papel principal do proprietário ou do gestor é estabelecer claramente o que quer fazer, definir a sua visão do futuro. Se quer fazer um grande vinho, tem que organizar a vida da propriedade, das pessoas, para reunir as condições necessárias à obtenção de um grande vinho. Se o proprietário, ou o director, não tiver essa vontade, não vai consegui-lo. Pode ter um grande terreno, mas tudo tem que ser muito bem organizado para chegar ao resultado que um grande vinho requer. Não há compromissos possíveis com a qualidade. Quase sempre é necessário sacrificar a quantidade e ser muito exigente consigo próprio. Nunca se pode estar satisfeito com o resultado. Quando me perguntam se conseguimos, digo-lhes que temos alguns bons vinhos. Mas há sempre o sonho de ir mais longe. O papel principal do gestor é sempre de insatisfação perpétua e tentar ir sempre mais além. O mais perigoso para uma propriedade é o seu proprietário, ou o seu gestor, estar satisfeito com o resultado. Toda a equipa percebe isto. Se não existir essa vontade, desmorona-se tudo.
Independentemente dos méritos que pode ter tido na organização dessa vontade colectiva, o Christian teve sorte, porque chegou em 1993 e e o ano seguinte foi uma das melhores colheitas de Vinho do Porto das últimas décadas.
Isso foi uma sorte fantástica. Foi uma grande oportunidade de mostrarmos ao mundo que a Noval estava de volta. Depois dos anos 80, com vinhos um pouco decepcionantes para a Noval, foi possível nesse grande ano fazer uma quantidade muito pequena de um grande vintage Quinta do Noval. Em vez de 5 mil caixas, fizemos apenas 900 caixas, usando as melhores uvas da propriedade, e isso foi uma mensagem muito importante que demos ao mercado. A Noval tinha a vontade de voltar a fazer grandes vinhos.
Acha mesmo que é possível fazer ainda melhor na Noval?
Claro que sim. É sempre possível imaginar alguma coisa melhor. Não sei se vou continuar mais 20 anos, mas nos anos que vêm é possível imaginar fazer melhor ainda. Tem que ser essa a motivação. Para mim e para toda a gente. Todos os que trabalham aqui têm essa ideia de tentar fazer sempre melhor. Noval é Noval, é um dos grandes terrenos do mundo e é capaz de fazer um vinho que pode ser considerado um dos melhores do mundo. É muito interessante fazer parte de uma equipa que tem esses terrenos nas mãos e que tem essa vontade.
É notória uma mudança na forma de os produtores encararem o Porto Vintage. Hoje os vinhos são mais elegantes, menos difíceis à nascença. Também é essa a vossa intenção, tornar os vintages bebíveis mais novos, a pensar no mercado?
Não é por causa do mercado. É por causa da maneira de trabalhar na vinha, na adega. Hoje fazemos vinhos com frutos muito mais precisos, muito mais puros. Os taninos que havia antes ainda estão aí. Os dados analíticos comprovam-no. Mas os vinhos de hoje são tão maravilhosos que os taninos estão muito bem integrados com tudo o resto. Antigamente havia vintages com muito tanino, eram quase impossíveis de beber ou de provar ao inicio. Mas toda a gente dizia: "Isto é formidável, vai ser muito bom um dia". E foi. Hoje temos vinhos que são muito harmoniosos, muito equilibrados e com uma estrutura tânica para envelhecerem durante muitos anos. Estamos todos a trabalhar melhor e os vinhos são simplesmente melhores do que antes. Não estamos a fazer vinhos para vender mais cedo. Os 2011 vão envelhecer um século, tenho a certeza, mas são muito agradáveis de beber desde já.
De todos os vinhos que fizeram desde que chegou ao Douro, o vintage 2011 é o que mais gosta?
Talvez. O 2011 é um ano fantástico. Para mim, é uma enorme satisfação poder fazer vinhos desta qualidade. Mas há outros de que gosto muito. O vintage 2000, por exemplo, é outro grande vinho. Tem um potencial enorme para o futuro. O maravilhoso de 2011 é a qualidade geral dos vintages que se fizeram. Para a promoção e a imagem do Porto Vintage e do Douro em geral, foi uma colheita fantástica.
Tem a percepção de que nos mercados importantes passaram a olhar para o Vinho do Porto com outra atenção depois do vintage 2011?
Sim, sim. Eu passo seis meses por ano a viajar, a promover todos os vinhos que estou a fazer, portugueses, franceses. Na Ásia, por exemplo, trabalho muito com Bordéus. O Pichon-Baron vende muito na China. Desde há muitos anos que tento promover o vinho do Porto na China, ainda sem grande sucesso, mas recentemente estive em Hong-Kong e havia distribuidores, clientes, homens ricos que queriam vintage 2011. Nunca tinha tido uma experiência semelhante. Os chineses estão a perceber que o vinho do Porto é um dos grandes vinhos do mundo e alguém que tem um Château Laffite, um Château Latour ou um Romanné-Conti tem que ter também um vintage Quinta do Noval ou um vintage de outro produtor.
Acredita que será com o Porto Vintage que a região vai crescer e afirmar-se internacionalmente ou será com os vinhos tranquilos?
Nem a região, nem o sector do Vinho do Porto podem viver só dos vintage, porque os vintage são sempre uma selecção muito restrita dos melhores vinhos, dos melhores anos. O Porto Vintage é um embaixador para o sector e para a região, mas é evidente que temos de viver também dos outros vinhos, dos Tawny, do LBV.
A Noval vai continuar a ser uma empresa essencialmente de Vinho do Porto ou vai apostar cada vez mais em vinhos do Douro?
A Noval é uma empresa histórica do sector do Vinho do Porto. Toda a sua identidade é baseada na qualidade dos seus vinhos do Porto, somos uma lenda do Vinho do Porto. Se vamos a Nova Iorque ou a Londres fazer uma prova de vintage da Noval, toda a gente aparece. A Noval tem um poder fantástico. Então nunca devemos abandonar o que nós fazemos muito bem, que é Vinho do Porto. Actualmente, o Vinho do Porto representa cerca de 70% da nossa produção. O resto é vinho do Douro. Acho que estas percentagens se vão manter mais ou menos assim. Mas acredito muito no futuro dos vinhos do Douro. O primeiro vinho do Douro da Quinta do Noval e da Quinta da Romaneira é de 2004. Hoje estamos a vender o 2009. Cinco anos depois, já temos mercados no mundo inteiro para estes vinhos. As pessoas estão a descobrir os vinhos do Douro e nós também estamos a fazer progressos. O tinto 2009 é muito melhor do que o 2004. Estamos a aprender a vinificar melhor as castas que temos cá. Os vinhos tranquilos são um outro elemento de desenvolvimento da região. E isto não são só palavras. Eu próprio fiz há uns anos um grande investimento pessoal na Quinta da Romaneira e, recentemente, aumentei esse investimento, porque acredito totalmente no futuro dos vinhos tintos e brancos do Douro.
Como conjuga a sua condição de administrador da Axa Milesime (detentora da Quinta do Noval) com a de acionista privado da Romaneira?
É normal que alguém que gosta do vinho, como é o meu caso, queira ter alguns hectares seus. Um administrador de uma empresa do Douro que não quisesse investir no Douro não seria um bom administrador [risos]. Infelizmente, não sou acionista da Quinta do Noval, mas é como se fosse. Estou de alma e coração na Noval, penso diariamente na Noval. Não há qualquer conflito.
Possui vinhas noutro lugar do mundo?
Tenho uma vinha em Inglaterra. Sou inglês, trabalho na Noval há 20 anos e estou há 13 anos em Bordéus. Sou um emigrante inglês em França. Quando deixar a França, vou voltar a Portugal, não vou voltar a Inglaterra. Mas ainda sou inglês e há sítios no sul de Inglaterra muito interessantes para a produção de vinho, geologicamente quase idênticos à região de Champanhe. Encontrei uma propriedade de 12 hectares, em Hampshire, no sul de Inglaterra, onde plantei Chardonnay, Pinot Noir e Pinot Meunier. Estou a fazer ali espumantes que são muito interessantes.
Vai acabar a viver no Douro?
Penso que sim. É o meu objectivo.
É uma declaração de amor ao Douro?
Desde há 20 anos.
O que mais o marcou no Douro?
Quando estou no Douro quero viver ali para sempre. É o único sítio do mundo onde tenho esse sentimento. Hoje às 7 da manhã [esta entrevista foi feita no dia 13 de Outubro], depois do grande jantar que tivemos ontem à noite, andei durante uma hora e meia a correr as vinhas e vi o sol a nascer sobre o rio Douro… É um lugar selvagem mas ao mesmo tempo também produto do trabalho do homem desde há séculos. Esta combinação, entre o trabalho do homem, o amor do homem pela terra, e o lado selvagem da paisagem, é extraordinária na Europa. Paris fica só a uma hora e meia desde o aeroporto do Porto e estamos num sítio que para mim é o mais bonito do mundo.
Está contente com o seu novo sócio na Romaneira ( o brasileiro André Esteves)
Estou muito contente. Em 2004, pude comprar a Quinta da Romaneira com mais 11 sócios. Alguns quiseram fazer um hotel. Nunca foi o meu interesse. Depois entrou no capital uma sociedade de private equity e no final do ano passado tive a oportunidade de encontrar um homem que queria ser meu parceiro a longo prazo como sócio maioritário. A razão por que estou muito contente é que ele comprou todas as acções dos outros accionistas — agora sou só eu e ele — e ambos temos a intenção de trabalhar juntos nesta propriedade a longo prazo. Isso é essencial. Ele percebe o potencial dos vinhos tintos do Douro e acho que podemos ter um futuro interessante na Romaneira.
Uma visão de longo prazo é algo que as private equity não têm. Querem retorno imediato e é difícil gerir projectos na área dos vinhos com accionistas assim…
Exactamente. Só é possível gerir uma propriedade de vinho pensando em décadas. Pensando no futuro de um investimento, no futuro de uma família. Só assim é possível ter uma política consistente de qualidade, na vinha e na forma de fazer o vinho. Se eu quero vender Vinho do Porto de 10 anos, faço o vinho agora e daqui a dez anos vou ter vinho para vender. O vinho que não vendermos podemos vendê-lo mais tarde como um Porto 20 anos. Para uma empresa de capital de risco, isso não é interessante, porque tudo é feito a pensar no ano seguinte ou nos três meses seguintes. Eu gosto muito de pensar prazo. Já é raro trabalhar assim, porque no mundo de hoje toda a gente está a pensar a curto prazo. É evidente que haverá um momento no futuro em que nós não vamos estar cá, mas trabalhando a prazo trabalhamos para as próprias gerações, para a coisa em si, para a propriedade, para o vinho, para os consumidores. Eu gosto muito dessa ideia.
Como é que o seu sócio descobriu a Romaneira?
Por intermédio de um amigo meu, que é banqueiro. Um dia telefonou-me dizendo que conhecia uma pessoa muito interessante, que gostava muito de vinho, e que eu devia conhecê-la.
A Romaneira nunca mais vai voltar a ser hotel?
Nunca podemos dizer nunca mais, mas essa é a nossa ideia. Queremos utilizar as casas para receber os clientes da empresa, jornalistas, distribuidores, para desenvolver a parte do vinho. Mas também estamos a pensar em alugar uma das casas a famílias ou a grupos de amigos por uma ou duas semanas. Talvez comecemos a fazer isso a partir do próximo ano. É mais adaptado para as condições do Douro. Durante quatro ou cinco meses do ano é muito agradável ir fazer férias ao Douro. No resto do ano é mais difícil. O problema de um hotel de luxo é que é obrigado a ter muitos funcionários. Se só temos clientes durante quatro a cinco meses, o que fazemos com os funcionários durante os outros sete meses? É muito difícil de gerir. Mas nos temos aquele sítio fantástico e durante os bons meses do Douro vamos poder alugar a quinta a clientes ricos que querem viver uma experiência num dos sítios mais bonitos do mundo.
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Christian Seely
Nascido em 1960, Christian Seely frequentou a Harrow School, o Cambridge Trinity College e o INSEAD. É director da Quinta do Noval desde 1993, director do grupo AXA Millésimes desde 2001 e director e accionista da Quinta da Romaneira desde 2004.
Na AXA Millésimes, sediada no Château Pichon Baron, em Pauillac (Bordéus), é responsável pela gestão deste e de outros châteaux, como o Château Petit-Village (Pomerol), Suduiraut (Sauternes), Belles Eaux Mas (Languedoc), Domaine l’Arlot (Nuits-St-Georges) e Disznókõ (Hungria). É ainda presidente da Compagnie Médocaine des Grands Crus, uma das maiores empresas negociantes de vinhos de Bordéus, totalmente detida pela AXA Millésimes. Além de acionista da Romaneira, Christian Seely é também fundador e co-proprietário da Coates and Seely Ltd., empresa produtora de espumante inglês, sediada em Hampshire, Inglaterra.