Fugas - Vinhos

  • Raúl Pérez
    Raúl Pérez DR
  • DR

Raúl Pérez e o renascimento dos vinhos de Trás-os-Montes

Por Pedro Garcias

Aos 40 anos, Raúl Pérez é o enólogo espanhol mais pontuado por Robert Parker, o guru da crítica de vinho. Depois de ter ajudado a levar a pequena região de Bierzo ao estrelato com a variedade Mencia, pode vir a fazer o mesmo com Trás-os-Montes, que considera ser um território com muito potencial para castas como o Bastardo ou a Tinta Amarela.

Raúl Pérez, o enólogo de Espanha mais pontuado por Robert Parker, chegou da vinha com um Dogue de Bordéus e uma amiga no seu Mini Cooper azul. A cena pode parecer algo excêntrica, mas sua imagem – barba de semanas e roupa suja do trabalho- é o contrário da pose altiva e professoral dos grandes consultores enológicos mundiais. Tímido e sem qualquer tique de vedeta, fala baixo e só o necessário, parecendo viver ensimesmado em torno dos inúmeros vinhos em que está envolvido, tanto como produtor como assessor.

Na véspera, 19 de Outubro, tinha terminado a vindima em Bierzo, uma região muito pequena mas antiga na produção de vinho (embora só tenha sido demarcada há pouco mais de 20 anos), situada no noroeste da província de León, mesmo na fronteira com a Galiza. Na manhã do dia seguinte, juntamente com dois sobrinhos e mais alguns colaboradores, já estava em Sonim, em Valpaços, para vindimar uma pequena parcela de Tinta Amarela. Quase um mês e meio antes, no dia 8 de Setembro, quando a maioria dos produtores durienses ainda andava a fazer brancos, esteve no Douro, na aldeia de Pai Calvo, a colher uvas para o seu tinto Ultreia, que faz na adega de Dirk Niepoort. As graduações não ultrapassaram os 12,5%. "Todos os enólogos desejam fazer vinhos tintos parecidos com os da Borgonha, mas depois querem vindimar uvas maduras, com bastante álcool e estrutura", ironiza.

Entre o dia 8 de Setembro e 20 de Outubro muita coisa aconteceu. A partir do dia 26 de Setembro, quase três meses de sol e seca foram abruptamente interrompidos por semanas de fortes chuvas. A expectativa de uma colheita extraordinária desmoronou-se. O ano vitícola passou a ficar dividido entre os vinhos feitos antes das chuvas e os vinhos feitos depois das chuvas. A água em abundância em plena vindima nunca foi amiga do bom vinho.

Em Sonim, Raúl Pérez encontrou muita uva podre. Escolheu as melhores e não encheu mais do que um tractor com algumas dezenas de caixas. Ao fim da manhã, o grupo já estava na adega de Fernando Faria, o seu parceiro local, para o almoço de vindima. De tarde, Raúl regressou a Bierzo, para acompanhar a fermentação dos vinhos, e o resto do grupo tratou de vinificar as uvas em lagar, sem qualquer desengace, macerando-as suavemente. O resto do guião era simples: mais ou menos a meio da fermentação, o mosto seria desencubado e transferido para barricas usadas, permanecendo aí até à próxima vindima. Nessa altura, o vinho é retirado para dar lugar ao novo mosto. "Os meus tintos só passam um ano natural em barrica. O que queres tirar de uma barrica, taninos? Os tintos já os têm. Estrutura? Também já têm. O que eu quero de uma barrica é estabilidade. Nos brancos é diferente, podem e devem ficar em barrica muito mais tempo do que os tintos", defende Raúl Pérez.

Macerações com engaço, estágios curtos dos tintos em barrica e estágios longos dos brancos: três conceitos que vão ao arrepio do mainstream do vinho. Não é tudo. Raúl Pérez gosta de arriscar – "os grandes vinhos nasceram de grandes descuidos", lembra – e em alguns tintos deixa o vinho em contacto com as massas durante longos meses. Este ano vinificou em ânforas de barro e, inspirado em práticas antigas de viticultores de León, tenciona deixar lá o vinho misturado com a pasta de películas até à próxima vindima [protegido com sulfuroso e CO2]. "Não sei o que vai sair. Na África do Sul trabalhamos os vinhos em barro e em cimento e os vinhos em barro são muitíssimo mais finos", assegura.

Nos brancos, Raúl Pérez nem quer ouvir falar em batonnage (batimento das borras, técnica cada vez mais utilizada nos vinhos estagiados em madeira) e explica porquê: "A battonage é um sistema de oxidação não controlada. Tu não sabes que quantidade de oxigénio estás a meter no vinho, num momento em que o vinho está muito receptivo a receber ar. Os vinhos com battonage são muito mais pálidos e oxidados. O que se pretende com a battonage, passar a manoproteína das leveduras para o vinho? Quer dizer que quando morreres os vermes não te vão comer? Comem-te mais lentamente, mas comem. No vinho é a mesma coisa. As leveduras vão morrer e a parede celular onde está a manoproteína [que torna os vinhos mais gordos] vai acabar por degradar-se. Se bateres o vinho, pode ser em 15 dias. Se não fizeres nada, pode ser em três ou quatro meses".

Já em relação aos tintos, não é tão definitivo: "Em zonas onde há mais acidez, a battonage pode ser interessante. Nós nunca fazemos, mas no Tinta Amarela [de Sonim] vamos dar-lhe um pouco de fermentação em barrica e batê-lo durante três a quatro semanas, para o oxigenar um pouco".

Génio ou louco, Raúl Pérez (e também Álvaro Palácios) não só ajudou a colocar Bierzo e a casta Mencia no mapa mundi dos vinhos como tem vindo a revolucionar a enologia em Espanha. É o mais novo de três irmãos- dois rapazes e uma rapariga - oriundos de uma família humilde de viticultores de Valtuille de Abajo, em Bierzo. O pai morreu na adega, a tentar salvar dois colaboradores de uma intoxicação com gases. Raúl começou a trabalhar na casa com 19 anos (nasceu em 1973). Esteve para ser médico e ainda chegou a frequentar Medicina em Oviedo, mas a boémia e outros interesses afastaram-no do curso.

Um dia, mesmo no limite das inscrições, Daniel, o irmão mais velho, matriculou-o na Escola de Enologia de Valência, e esse impulso paternal haveria de ser decisivo. Hoje, Raúl é o responsável pelos vinhos da família, na adega de Castro Ventosa, em Valtuille, dá consultoria a inúmeros produtores e produz os seus próprios vinhos em diversas regiões. Nas Rias Baixas tem feito experiências com castas tintas como Caiño e o Espadeiro e faz o Alvarinho Sketch (96 pontos Parker em 2009); na Ribeira Sacra elabora os tintos El Pecado (98 pontos Parker em 2007) e Penitência; e em Bierzo produz o tinto Tentação e brancos e tintos com a chancela Ultreia (98 pontos Parker com o tinto Ultreia Valtuille 2005). O enólogo leonês faz também vinhos em Monterrei (Galiza), León (com a casta Preto Picudo), Madrid, Maiorca, Douro, Vinhos Verdes (o Alvarinho Dorado), Bordéus, Chile e África do Sul. Na maioria dos casos, são produções muito pequenas, da ordem das centenas de garrafas, que desaparecem num ápice. Os seus vinhos, como alguém escreveu, "não admitem meias tintas. A entrega ou a recusa, o ódio ou o amor: qualquer coisa menos a indiferença".

O que o move é o gosto pela uva e pelo vinho. Raúl só entende o vinho a partir da vinha, onde tudo se decide. A vinificação com engaço (cacho inteiro) é, em si mesmo, uma demonstração de respeito pela uva, como se depreende das suas palavras: "Devemos tocar na uva o menos possível e apostar de verdade na maneira mais natural de vinificar. O engaço dá problemas se se espreme, porque acaba por deixar nos vinhos um acento verde e lenhoso. Se o trabalharmos com cuidado durante a maceração, pode ser benéfico para a acidez. O engaço obriga-te a uma produção manual e isso é bom. Eu tento elaborar os meus vinhos tendo em conta o que faziam os nossos antepassados".

Foi o respeito pela tradição, o inconformismo perante a crescente homogeneização do vinho e a vontade de resgatar regiões e castas esquecidas (a Mencia na Ribeira Sacra e Bierzo, o Prieto Picudo em León, a Gargollasa em Maiorca) que também o levaram até Trás-os-Montes, para muitos the next big idea do atlas do vinho em Portugal.

Raúl despertou para as vinhas velhas transmontanas através do irmão, que já leva alguns anos a instalar vinhas novas no norte do país. Daniel passa quase mais tempo em Trás-os-Montes do que em Bierzo e já tem casa em Valpaços. Mas a sua primeira casa é a do amigo Fernando Faria, em Sonim, aldeia onde tem vindo a comprar algumas parcelas de vinha. O Tinta Amarela que Raúl Pérez fez nesta vindima veio de uma dessas parcelas.

Há alguns anos que Raúl tem vindo a acompanhar a evolução dos vinhos de Fernando Faria (comercializa a marca Casal Faria), um dos rostos da nova vaga de produtores transmontanos, para poder entender a região. Um dos vinhos, um branco de vinhas velhas, o Casal Faria Superior 2009, com três anos em barricas usadas (já avaliado na FUGAS), já teve o seu dedo. "No início reduzia um pouco, mas agora está com uma complexidade incrível e ainda é bastante novo", diz.

É um branco proveniente de solos graníticos, tão do agrado do enólogo espanhol. "Os granitos de Trás-os-Montes [mais vincados na zona de Valpaços e Vidago] são muito interessantes para trabalhar. Também é muito interessante o clima, bastante seco. Não há quase doenças, as vinhas tratam-se com muito pouco trabalho e obviamente que tudo isso se reflecte nos vinhos", acentua.

O enólogo espanhol não tem dúvidas sobre o grande potencial de Trás-os-Montes. "As zonas que têm vinhas velhas são sempre interessantes. Se as vinhas continuam por aqui ao fim de tantos anos, é por alguma razão", sustenta. Além de vinhas centenárias, a região possui solos ideais para a cultura da vinha, cotas que garantem vinhos maduros mas ao mesmo tempo frescos e castas bem adaptadas ao lugar.

Uma das mais tradicionais é o Bastardo, originário do Jura, em França, onde leva o nome de Trousseau. "Em Trás-os-Montes vindima-se o Bastardo muito maduro e eu acho que deve ser o contrário. É uma variedade com pouca pele, muito fina, e a extracção é muito lenta. Na zona de Jura, os vinhos de Bastardo são muito frescos porque são colhidos quase verdes", sublinha Raúl Pérez.

Na sua opinião, é possível "tirar muito potencial do Bastardo" em Trás-os-Montes, "mas não quer dizer que os vinhos da região passem só por essa casta". "Eu gosto muito da Tinta Amarela [a Trincadeira do Alentejo]. É uma variedade fantástica para trabalhar. É polivalente, podes sacar dela tudo o que quiseres, fazeres vinhos com mais ou menos extracção, com mais ou menos álcool, com pouca ou muita estrutura. Para a minha forma de trabalhar encaixa muito bem. Temos um sistema de extracção muito lento, muito suave, e a Tinta Amarela maneja-se muito bem. O Bastardo requer mais trabalho desde o início".

E a Touriga Nacional? "Por si só, é uma casta incrível. Pode-se gostar ou não. Eu não gosto. Impõe-se demasiado. Quando fazes um vinho com uma mistura de várias castas, só aparece a Touriga Nacional. Num sistema multicasta, a Touriga Nacional não casa, porque marca muito. Que adianta misturar Tinta Amarela e Bastado com 20 por cento de Touriga Nacional se o que fica é a marca da Touriga Nacional?".

Outra casta que não aprecia é a Tinta Roriz, também muito implantada em Trás-os-Montes. "No Douro trabalhamos um pouco com Roriz, mas é uma variedade complicada. Em Portugal como em quase toda a Espanha [onde leva o nome de Tempranillo]. Sempre achei que é melhor como uva de mesa!...", graceja.

--%>