Raúl Pérez, o enólogo de Espanha mais pontuado por Robert Parker, chegou da vinha com um Dogue de Bordéus e uma amiga no seu Mini Cooper azul. A cena pode parecer algo excêntrica, mas sua imagem – barba de semanas e roupa suja do trabalho- é o contrário da pose altiva e professoral dos grandes consultores enológicos mundiais. Tímido e sem qualquer tique de vedeta, fala baixo e só o necessário, parecendo viver ensimesmado em torno dos inúmeros vinhos em que está envolvido, tanto como produtor como assessor.
Na véspera, 19 de Outubro, tinha terminado a vindima em Bierzo, uma região muito pequena mas antiga na produção de vinho (embora só tenha sido demarcada há pouco mais de 20 anos), situada no noroeste da província de León, mesmo na fronteira com a Galiza. Na manhã do dia seguinte, juntamente com dois sobrinhos e mais alguns colaboradores, já estava em Sonim, em Valpaços, para vindimar uma pequena parcela de Tinta Amarela. Quase um mês e meio antes, no dia 8 de Setembro, quando a maioria dos produtores durienses ainda andava a fazer brancos, esteve no Douro, na aldeia de Pai Calvo, a colher uvas para o seu tinto Ultreia, que faz na adega de Dirk Niepoort. As graduações não ultrapassaram os 12,5%. "Todos os enólogos desejam fazer vinhos tintos parecidos com os da Borgonha, mas depois querem vindimar uvas maduras, com bastante álcool e estrutura", ironiza.
Entre o dia 8 de Setembro e 20 de Outubro muita coisa aconteceu. A partir do dia 26 de Setembro, quase três meses de sol e seca foram abruptamente interrompidos por semanas de fortes chuvas. A expectativa de uma colheita extraordinária desmoronou-se. O ano vitícola passou a ficar dividido entre os vinhos feitos antes das chuvas e os vinhos feitos depois das chuvas. A água em abundância em plena vindima nunca foi amiga do bom vinho.
Em Sonim, Raúl Pérez encontrou muita uva podre. Escolheu as melhores e não encheu mais do que um tractor com algumas dezenas de caixas. Ao fim da manhã, o grupo já estava na adega de Fernando Faria, o seu parceiro local, para o almoço de vindima. De tarde, Raúl regressou a Bierzo, para acompanhar a fermentação dos vinhos, e o resto do grupo tratou de vinificar as uvas em lagar, sem qualquer desengace, macerando-as suavemente. O resto do guião era simples: mais ou menos a meio da fermentação, o mosto seria desencubado e transferido para barricas usadas, permanecendo aí até à próxima vindima. Nessa altura, o vinho é retirado para dar lugar ao novo mosto. "Os meus tintos só passam um ano natural em barrica. O que queres tirar de uma barrica, taninos? Os tintos já os têm. Estrutura? Também já têm. O que eu quero de uma barrica é estabilidade. Nos brancos é diferente, podem e devem ficar em barrica muito mais tempo do que os tintos", defende Raúl Pérez.
Macerações com engaço, estágios curtos dos tintos em barrica e estágios longos dos brancos: três conceitos que vão ao arrepio do mainstream do vinho. Não é tudo. Raúl Pérez gosta de arriscar – "os grandes vinhos nasceram de grandes descuidos", lembra – e em alguns tintos deixa o vinho em contacto com as massas durante longos meses. Este ano vinificou em ânforas de barro e, inspirado em práticas antigas de viticultores de León, tenciona deixar lá o vinho misturado com a pasta de películas até à próxima vindima [protegido com sulfuroso e CO2]. "Não sei o que vai sair. Na África do Sul trabalhamos os vinhos em barro e em cimento e os vinhos em barro são muitíssimo mais finos", assegura.