É uma velha máxima a ideia de que o sonho comanda a vida, mas já não será assim tão comum vê-la aplicada no concreto das situações. Muito menos quando de trata da produção de vinhos, sector onde a pressa, a lógica de tendências e estilos e a mistura com uma certa ganância ganharam terreno nos últimos tempos. Tudo ao contrário daquilo que se passa com a Quinta Cabeças do Reguengo, no Parque Natural da Serra de São Mamede, onde o calendário lunar, a natureza e a tradição comandam em absoluto o ciclo produtivo.
“É uma viticultura livre de químicos e um pouco sonhadora”, anuncia o produtor, que persegue também “o sonho de fazer puros slow wines [vinhos lentos], daqueles que se bebem dois ou três pares de anos após a colheita e se admiram nas décadas seguintes”. E nem se pense que os conceitos de biológico, natural ou biodinâmico possam ser, neste caso, meros slogans ou adereços. É essa a lógica de produção, a prática e também o único propósito deste produtor com uma rara cultura de vinho e que assume por inteiro essa filosofia.
João Afonso, é dele que se trata, integra a redacção da Revista de Vinhos e deixou-nos já também em forma de livro testemunhos desse vasto conhecimento e apego ao mundo do vinho. Não é esta a sua primeira incursão pelo sector da produção, mas acredita ter encontrado neste projecto o contexto e as condições ideais para poder produzir um “vinho da terra”: Uma vinha muito velha, a uma altitude de 600 metros e voltada a Sul, que chegou a estar abandonada na penúltima década.
A opção foi por um criterioso trabalho de recuperação de cepas, “não arrancando um único pé de vinha velha” e mantendo a saudável parceria entre a multiplicidade de castas (16 tintas e 12 brancas, pelo menos). O convívio vegetal alarga-se ainda a várias outras árvores de fruto, sobretudo oliveiras, a chamada vinha consociada, que impede a designação de Alentejo DOC, mas que obedece ao propósito de “puzzle vegetal” e de “cultivo em harmonia com a terra”, que conduzem a uma maior protecção natural e potenciam o equilíbrio de aromas e sabores.
Há vinhos brancos (Equinócio) e tintos (Solstício) de vinhas velhas de muito baixa produção. Do tinto da segunda colheita, em 2010, saíram apenas 842 garrafas que só este mês começaram a sair da adega para serem vendidas a 32 euros. Pisa a pé e fermentação em lagar, a que se seguiram 18 meses de estágio em três barricas usadas e subsequente engarrafamento, sem colagem ou filtragem.
Vinho de acentuada personalidade e carácter, aromas muito finos e saborosa expressão de frutas vermelhas, como cerejas e framboesas. Uma rara elegância e o equilíbrio de conjunto são as notas dominantes, com o final de boca guloso e com leve rasto de tanino seco a desafiar comida. Muito elegante e saboroso, mas também único e com a marca da terra e dos astros da serra de São Mamede.