Fugas - Vinhos

Fabrizio Bensch/Reuters

Madeira Malvasia 10 Anos

Por Rui Falcão

Rui Falcão enaltece as qualidades e singularidades do Vinho da Madeira.

O Vinho da Madeira é, para o bem e para o mal, um vinho excepcional pela personalidade forte e pela qualidade ímpar… mas também um vinho singular pela sua capacidade de adaptação a um ambiente extremado que se situa quase no limite do cultivo da vinha. Só uma outra região no mundo se pode assemelhar ao Vinho da Madeira no seu princípio activo e na sua originalidade, a região de Champagne. Apesar das inegáveis disparidades e distância que separam as duas denominações, as duas regiões partilham alguns pontos em comum que merecem ser explorados.

Embora por razões diametralmente opostas, ambas vivem muito próximas do limite do cultivo da vinha, pelo frio extremo do Norte da Europa ou pelo calor húmido do clima subtropical da Madeira, proporcionando condições extremas à vinha, alimentando vinhos que em condições normais se situariam muito próximo do desastre. Na verdade, as duas regiões foram criadas e elevadas ao céu pelo engenho e pela perseverança do homem graças à utilização de duas técnicas sofisticadas, a segunda fermentação em garrafa no caso de Champagne e a fortificação e posterior envelhecimento oxidativo no caso do Madeira, transformando vinhos base banais e muito difíceis em algo que é verdadeiramente sublime.

E, curiosamente, apesar dos opostos climáticos onde as duas regiões assentam, ambas dependem de uma acidez brutal que proporciona uma frescura absoluta, dependem daquilo que se transformou no sinal exterior mais explícito e inequívoco das duas denominações, a característica inimitável que empresta personalidade e que se converteu na espinha dorsal dos dois estilos de vinho. Talvez não fosse má ideia aproveitar mais amiúde o balanço e reconhecimento dos vinhos de Champagne para explicar a forte personalidade dos vinhos da Madeira.

Depois de um longo período menos feliz, os vinhos da Madeira começam a despertar um renovado interesse junto dos líderes de opinião nacionais e internacionais, bem como de um seguimento mais atento por parte de um grupo de consumidores cada dia mais alargado. Porém, talvez por algum desconhecimento ou natural deslumbramento com a qualidade e idade avançada de muitos vinhos da Madeira, temos tendência para nos fixarmos nos vinhos Frasqueira, nesse prodígio da natureza e do homem que muitos consideram ser a melhor representação do Vinho da Madeira.

A presença de uma data no rótulo, a indicação de um ano de colheita simboliza uma atracção que impressiona pela idade quase inimaginável de muitos Frasqueira. Poder provar um vinho com idades próximas ao meio século, ou mesmo que ultrapasse os primeiros cem anos de vida, é algo a que ninguém, por mais experiência acumulada de que disponha, consegue resistir. Já para não mencionar que a simples alusão a uma data no rótulo constitui uma vantagem comercial insofismável ao permitir a associação à celebração de um nascimento ou qualquer outra efeméride que se deseja solenizar com a oferta de uma garrafa de vinho.

Uma realidade que talvez ajude a explicar a tragédia efectiva dos vinhos com indicação de idade na Madeira, os vinhos de lote com a indicação de 10, 15, 20, 30 ou 40 Anos no rótulo que, apesar de frequentemente enjeitados, conseguem ser pelo menos tão fascinantes e intempestivos como muitos dos melhores Colheita e Frasqueira. A arte do lote, mesmo que com uma só casta em cada um dos estilos do Madeira, é uma das melhores formas de expressar a identidade de cada produtor, o perfil histórico de cada casa, a competência e talento de cada enólogo. Ao provar um vinho de lote com indicação de idade consegue-se perceber a personalidade de cada provador, de cada casa, de cada enólogo.

E nem sequer é preciso avançar para os lotes com indicação de idade mais velhos e mais sofisticados, aqueles onde por vezes a qualidade excelsa e a personalidade forte de vinhos com idades muito avançadas se sobrepõe ao querer e desígnio do enólogo. Onde a personalidade e a sensibilidade de cada casa é enfatizada é precisamente nas idades intermédias, nos vinhos de dez e quinze anos, aqueles que obrigam a maior saber, experiência e engenho por parte dos provadores de cada casa.

Muito recentemente tive o privilégio de conduzir uma prova que juntou cinco vinhos da Madeira com indicação de idade dez anos, todos da casta Malvasia, a de reconhecimento mais fácil, prova onde a diferença entre os produtores esteve bem patente e foi reveladora do estilo individual de cada casa. Uns mostravam mais pendor para a doçura, enquanto outros mostravam maior austeridade no açúcar; uns mostravam uma faceta mais conservadora, enquanto outros mostravam um lado mais rebelde e insubmisso, marcando variações importantes na cor, robustez, aroma, estilo e vigor, muito ao jeito do perfil histórico de cada casa e à personalidade de cada um dos enólogos/provadores que decidiu o lote. Todos brilhantes, diga-se, cada um deles capaz de conquistar diferentes paladares e diferentes sensibilidades.

Ligeiramente mais doce, rico e untuoso o Justino’s, sereno e profundamente elegante o Henriques & Henriques, tenso e feroz o Blandy’s, austero e acerado o Barbeito e simultaneamente rico, aprumado e enérgico o HM Borges, um vinho que traduz de forma franca e directa a personalidade directa e cortante de Ivo Couto, um dos homens mais injustamente esquecidos do Vinho da Madeira, um dos nomes menos falados fora do circuito dos intensamente apaixonados pelos vinhos da Madeira… mas que merecia ser mais falado e reconhecido.

Aproveite a oportunidade, tome partido do período de festas natalícias para comprar uma ou outra garrafa de Vinho da Madeira e investigue estes vinhos que, para além de uma qualidade irrepreensível, representam ainda relações qualidade/preço absolutamente deslumbrantes, com essa particularidade extra de conseguir perseverar a saúde durante mais de uma década mesmo depois de abertos. 

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