Fugas - Vinhos

Adriano Miranda

Alfaiate, um vinho notável

Por Rui Falcão

Da Herdade do Portocarro, um pequeno produtor da Península de Setúbal, um vinho branco diferente, profundo, carregado de personalidade, um vinho que ressuscita uma casta portuguesa, que confirma outras e que demonstra que há muito espaço para inovar…

O mundo do vinho diferencia-se das demais actividades agrícolas e de quase todas as restantes actividades económicas por viver num microcosmos muito próprio, solto de muitas das amarras tradicionais e preso a outras que lhe são únicas, por ser uma actividade muito particular e cheia de especificidades difíceis de compreender e assimilar para quem vem de fora, por ser tão espantosa e única que quase a livra de pontos de contacto com a normalidade do mundo.

Há quem chegue à produção de vinho por herança de terras, adega ou vinhas, por continuação de uma tradição familiar, por gosto, por oportunidade económica ou por paixão, talvez a palavra mais assustadora de pronunciar no mundo do vinho. De uma forma ou de outra, bem informada ou não, a larguíssima maioria dos produtores e enólogos existentes em qualquer parte do mundo fez uma escolha de vida assente na vontade de fazer vinho, na vontade de estar ligado à produção desta bebida apaixonante.

Ao contrário de tantas outras actividades profissionais onde se chega por necessidade, por falta de alternativas, por desconhecimento, por inércia ou por médias académicas que não consentiram outras saídas, quem chega ao vinho raramente o faz sem ser por vontade própria e vocação, sendo triviais os casos de mudanças e inclinações tardias, de derivações profissionais para o vinho de quem se aperfeiçoou em outras áreas e acabou fascinado por este universo particular e tão provocador para os sentidos. Quem está no mundo do vinho gosta verdadeiramente do que faz e isso sente-se de imediato no olhar, nas expressões corporais, na maioria dos discursos directos e escritos, no ardor com que se discutem temas que muitas vezes parecem exóticos e pouco merecedores de atenção para a maioria dos mortais.

Como sempre na vida, algumas das personagens do universo do vinho são mais fascinantes que outras, algumas mais densas e outras mais superficiais, algumas mais fechadas e outras mais espirituosas, algumas mais despretensiosas e outras mais intelectuais, algumas mais conhecedoras e outras mais seguidoras, algumas mais estudiosas e outras mais empíricas. Algumas fazem história, debatem, inovam ou revolucionam, outras seguem tradições, mantêm vivos os clássicos, preservam os ensinamentos do passado. Algumas têm ideias próprias enquanto outras se limitam a seguir modas fortuitas ou a reproduzir conceitos importados de outros produtores ou de outras paragens.

O que infelizmente nem todos conseguem, mesmo quando incluídos nesta imensa diversidade de conceitos, filosofias e perspectivas, é estruturar um projecto coerente e original que reúna conceitos tão variados como entusiasmo, investigação, inovação, autenticidade e singularidade, misturados ainda com arrojo e racionalidade económica. Nem deveria ser necessário discorrer sobre esta última condição, a razoabilidade e viabilidade financeira, mas infelizmente, e como tal é tradicional, a paixão consegue por vezes iludir e atraiçoar mesmo aqueles que costumam ser ponderados …

Entre os bons exemplos deste misto de criatividade, estudo e respeito pelo passado, a que se soma uma pontinha de audácia e atrevimento que convém garantir, conta-se a Herdade do Portocarro, um pequeno produtor da Península de Setúbal que apesar de estar prestes a festejar os primeiros dez anos de vida continua a apresentar-se como um saudável desconhecido para a maioria dos enófilos portugueses. As vinhas situam-se no Torrão, na longa cintura de arrozais que guarnece a margem esquerda do rio Sado, ligeiramente a sul de Alcácer do Sal, na fronteira entre os distritos de Setúbal e Évora.

Aquilo que poderia apresentar-se como um handicap sério para muitos produtores, porque todos sabemos que para a maioria dos consumidores, com razão ou sem ela, não é o mesmo identificar-se como produtor de vinho alentejano ou de Setúbal, acaba por ser uma irrelevância para José da Mota Capitão, o patrono, dono e alma dos vinhos da Herdade de Portocarro. Os vinhos são apresentados e conhecidos pelo nome, pela personalidade, pela qualidade e profunda originalidade do projecto, e vendem-se dessa forma sem estarem presos a formalismos legais de denominações de origem.

E lá originais, peculiares, excelentes e francamente sedutores e agradáveis os vinhos são. Até muito recentemente os vinhos, todos eles tintos, dividiam-se entre o Herdade do Portocarro, um lote de Aragonez, Alfrocheiro e Cabernet Sauvignon, o Cavalo Maluco, um lote de Touriga Franca, Touriga Nacional e Petit Verdot, e o Anima, um vinho extreme da casta italiana Sangiovese. Exemplos cabais de alguém que não se limitou a transcrever o que os vizinhos ou a região faziam, decidindo a selecção de castas por opções pessoais e validadas.

Mas não é sobre estes vinhos que hoje gostaria de falar, vinhos que uma década de consistência qualitativa e carácter profundo já consagraram, pelo menos entre um grupo de aficionados que gostam de vinhos autênticos. Escrevo antes sobre um vinho novo na casa, um vinho branco diferente, profundo, carregado de personalidade, um vinho que ressuscita uma casta portuguesa, que confirma outras e que demonstra que há muito espaço para inovar… mantendo os ensinamentos do passado.

O vinho chama-se Alfaiate, um vinho feito à medida da sensibilidade de Mota Capitão. O lote resulta da combinação das castas Sercial, Galego Dourado, Arinto e Antão Vaz, as duas primeiras de vinhas próprias em Portocarro, as duas seguintes provenientes do Alentejo, dos altos das serras alentejanas. Arinto e Antão Vaz são vindimadas muito cedo, quando garantem uma acidez vibrante e um grau alcoólico ainda minimalista, fazendo companhia ao difícil Sercial, casta que é igualmente conhecida pelo nome Esgana Cão face à acidez inflexível que costuma caucionar. E depois ainda há espaço para o Galego Dourado, uma casta branca nacional quase perdida e desprezada por todos, que faz parte do encepamento tradicional de Carcavelos… e que em tempos idos teria sido casta habitual na zona do Torrão, no mesmo espaço onde hoje se inserem as vinhas de Mota Capitão.

O vinho é um portento de austeridade, dureza, secura, extracto seco e frescura, um vinho à moda antiga que denuncia um perfil intemporal. Não tem nenhuma da frutinha tropical e sintomas de fogo-de-artifício que marcam muitos dos vinhos brancos actuais mas é um vinho sério, profundo, misterioso e que dá vontade de beber. E isso é um dos melhores elogios que se pode fazer a um vinho…  

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