Esta é a percepção clássica que de momento ainda continua associada ao Vinho da Madeira mas que felizmente começa a sofrer uma transformação radical, acercando o Vinho da Madeira dos consumidores nacionais e internacionais.
Para que a mudança se instale basta vencer os primeiros momentos de relutância conservadora, de inércia congénita que nos faz duvidar das coisas novas, basta superar os primeiros instantes de desconfiança. No fundo, basta que os vinhos sejam provados para rapidamente lhes descobrirmos os atributos que os fazem tão especiais. Cuidado, não são vinhos fáceis ou ordeiros, não são vinhos suaves ou conformes com os ditames das regras. São antes vinhos electrizantes e provocadores, desmedidos e irreverentes, vinhos que quase sentem prazer em quebrar as regras a que a “normalidade” vínica já nos habituou. É como se ouvíssemos Wraygunn ou Xutos & Pontapés pela primeira vez depois de passar décadas a ouvir o Coro de Santo Amaro de Oeiras.
Com reiterada frequência, os vinhos assumem notas aromáticas “estranhas” e inimitáveis, incomparáveis com qualquer outro vinho do mundo. Sensações que podem ser tão díspares e controversas como acetona, caril, caramelo, melaço, resina, raspa de limão, figos, maresia, bolo de mel, especiarias, casca de laranja, cedro ou iodo, notas aromáticas pouco habituais nos demais vinhos do mundo mas que no caso do Vinho da Madeira podem chegar a irromper juntos e estranhamente harmonizados. A sensação de umami, esse quinto sabor tão pouco valorizado no Ocidente e a que os orientais dedicam uma atenção e reverências tão especiais e que definem como “saboroso”, está frequentemente presente nos vinhos da Madeira, mais facilmente perceptível nos estilos mais secos e meio secos.
Poucas vezes um adjectivo é tão adequado quanto o qualificativo “único”, tão popular para descrever o Vinho da Madeira. Um adjectivo que é empregue pelos sabores e sensações que promove mas igualmente pela forma excêntrica como o vinho é produzido. A maioria dos vinhos mais acessíveis e de produção mais avantajada são aquecidos durante três meses após a fermentação e fortificação com álcool, processo que efectivamente estufa e oxida o vinho em ebulição. Após esse período de provações o vinho repousa em silêncio e contemplação durante pelo menos três anos, descansando em pipas e tonéis em armazéns fustigados pelo calor, prolongando assim a sua exposição directa ao calor e oxigénio, os dois inimigos figadais do vinho de que todos querem fugir… mas que no caso do Vinho da Madeira são amigos de coração.
Diz-se com frequência que a resistência mítica do Vinho da Madeira, o único vinho capaz de resistir praticamente ad aeternum de forma coerente e consistente, advém dessa estranha circunstância de sofrer tanta, mas tanta, violência na infância… que acaba endurecido e calejado para todo o sempre, capaz de suportar todas as agruras da vida sem pestanejar.
Quem já teve a felicidade de beber vinhos da Madeira realmente velhos, vinhos já com mais de um ou dois séculos de vida em casco e garrafa, sabe que a probabilidade de encontrar um vinho esplendoroso é tão grande como a probabilidade de encontrar um vinho jovem esplendoroso. O lento passar do tempo corre de uma forma diferente e ainda mais vagarosa para o Vinho da Madeira. Mesmo as garrafas abertas, por vezes encetadas há mais de uma década e guardadas sem cuidados especiais, mostram uma resiliência e capacidade de sobrevivência que desafiam a lógica e os prognósticos da ciência.