Todas as grandes famílias têm um parente tímido, um familiar mais calado e comedido nas palavras, um primo afastado de que pouco se ouve falar. A grandiosa família dos vinhos fortificados nacionais também tem um parente assim, um familiar pouco dado aos holofotes da fama, um primo afastado de que se conhece pouco e que raramente aparece ou se ouve falar.
Esse primo envergonhado chama-se Carcavelos e é parente directo dos outros três grandes vinhos generosos de Portugal, Vinho do Porto, Vinho da Madeira e Moscatel.
Apesar de fazer parte do grupo de vinhos históricos portugueses, apesar de ser uma das denominações de origem mais antigas de Portugal, criada em 1907 e demarcada em 1908, apesar de ser o vinho de Lisboa e de ter sido apadrinhado pelo mesmo Marquês de Pombal que elevou o Vinho do Porto à notoriedade mundial, hoje o Carcavelos é um vinho obscuro e quase ignorado em Portugal, um vinho de produção quase virtual, um vinho de que poucos terão ouvido falar e de que ainda menos terão alguma tido ocasião ou vontade de provar.
Não é seguramente por falta de peso histórico, por falta de tradição ou de qualidade que o Carcavelos chegou a este estado de entorpecimento. As vinhas estão plantadas na região desde o século XIV e os vinhos ganharam fama nos séculos XVIII e XIX, vendidos como vinhos nobres e aristocráticos. Um dos principais impulsionadores do vinho de Carcavelos foi o célebre Marquês de Pombal, quem sabe se motivado pela coincidência de possuir uma propriedade na região, a Quinta de Oeiras, e de ser um dos maiores produtores do vinho de Carcavelos. O vinho chegou a ser tão famoso e a influência do Marquês de Pombal tão grande que a Quinta de Oeiras chegou a “exportar” um terço da produção anual para a Companhia Geral da Agricultura dos Vinhos do Alto Douro, mais tarde conhecida como Real Companhia Velha, a fim de misturar os vinhos de Carcavelos com os vinhos do Porto da Real Companhia… para corrigir e melhorar os vinhos do Porto.
A verdadeira fama chegou mais tarde, a propósito das invasões napoleónicas e da presença dos homens de Wellington empenhados na defesa de Lisboa. O isolamento de Lisboa e a ocupação de parte do território pelas tropas francesas privou o exército inglês do abastecimento regular de Vinho do Porto, circunstância que favoreceu o surgimento da alternativa do Carcavelos, o vinho local igualmente fortificado que muito cedo ganhou os favores da armada britânica. Baptizado coloquialmente como Lisbon Wine, no regresso a casa os soldados e oficiais ingleses mantiveram a preferência pelo Carcavelos abrindo um mercado para ele.
O caminho do sucesso foi quebrado pelos primeiros surtos de oídio, a meio do século XIX, uma doença fúngica desconhecida na Europa que foi importada do continente americano e que dizimou grande parte das vinhas de Carcavelos. A produção teve quebras tão grandes, com valores que chegaram a atingir os 95%, que a exportação passou a ser impraticável, obrigando à perda do decisivo mercado inglês. Se o futuro já parecia incerto, a conjuntura ficou verdadeiramente lastimosa com a erupção da filoxera no terço final do século XIX, o parasita importado do continente americano que quase aniquilou as vinhas europeias.
Duas calamidades consecutivas que quebraram o espírito dos produtores dos vinhos de Carcavelos e que levaram a que poucos reformassem as vinhas, replantassem o que tinha sido destruído em pouco mais de três décadas de doenças sucessivas e incontroláveis. Um abandono da actividade agrícola que foi intensificado a meio do século XX, quando a região começou a ser invadida por prédios e urbanizações infinitas, acabando por se transformar num dos principais subúrbios de Lisboa, transfigurando-se de região vinhateira em região urbana. Ainda hoje algumas das urbanizações mais famosas dos concelhos de Oeiras e Cascais carregam o nome de antigas quintas produtoras de vinho de Carcavelos.
A rápida urbanização dos dois concelhos desmoronou quase por completo a produção do Carcavelos. Por mais de um instante, tudo pareceu perdido e por mais de uma vez a região esteve a ponto de se autodestruir, de se apagar voluntariamente do mapa. Só mesmo o esforço de uns poucos e a presença da Estação Agronómica de Oeiras permitiram a salvação daquela que é uma das mais pequenas denominações de origem do mundo. A produção é irrisória e hoje quase se resume a um produtor, a Estação Agronómica de Oeiras, organismo estatal, com o apoio material e moral da Câmara Municipal de Oeiras, que aceitou a responsabilidade de se transformar em guardião do Carcavelos.
Apesar de os vinhos poderem ser elaborados legalmente com uvas tintas, a tradição da denominação determina que o Carcavelos seja elaborado com um conjunto de castas brancas, algumas delas particulares da região. A mais importante, e também a mais característica da região, é o Galego Dourado, casta branca em desuso e quase extinta no resto do país. A acompanhar o Galego Dourado surgem as castas Arinto e Ratinho, a última das quais é mais uma das muitas castas obscuras de Portugal, um cruzamento das castas Malvasia Fina e Síria. Nas tintas estão aprovados o Castelão e Amostrinha, nome local para a variedade Preto Martinho.
Não será fácil encontrar Carcavelos à venda porque as produções são mínimas, a distribuição é quase inexistente e a maioria dos vinhos deixou de ser produzida há muitos anos. Mas vale a pena procurar em garrafeiras e lojas ou mercearias com stocks de vinhos velhos. Procure por garrafas da Quinta do Barão, um dos nomes mais seguros de Carcavelos. Procure igualmente por vinhos mais jovens mas especialmente interessantes, como o Quinta dos Pesos 1991, um grande vinho generoso que o tempo ajudou a tornar ainda mais complexo e subtil. Ou procure por aquele que será o Carcavelos mais fácil de encontrar, o Conde de Oeiras, o vinho que continua a ser produzido na Estação Agronómica de Oeiras e que beneficiou de um grande investimento na adega e nas vinhas da Estação. A recompensa é garantida.