Contrariando o entendimento do Tribunal da Propriedade Intelectual, os juízes do Tribunal da Relação de Lisboa decidiram recentemente proibir a Câmara de Oeiras de usar a marca que tinha registado em 2006 no Instituto Nacional da Propriedade Industrial. A autarquia recorreu da sentença para o Supremo Tribunal de Justiça, mas pelo sim pelo não já escolheu um novo nome para os rótulos das garrafas: Villa Oeiras.
Pode uma marca que usa um título nobiliárquico ser registada sem autorização do detentor desse título, um século depois da implantação da República? As opiniões dividem-se.
“Continuamos a defender que os títulos nobiliárquicos estão extintos em Portugal desde 1910”, diz a responsável pelo gabinete de imprensa da autarquia, Raquel Viana. “A marca que o município usou, Conde de Oeiras, não tinha intenção de se referir ao sr. Sebastião de Lorena [o queixoso que agora ganhou a acção na justiça], mas sim à figura histórica do Marquês de Pombal, a quem foi conferido o título de Conde Oeiras no séc. XVIII, que veio a conceder foral à vila de Oeiras”, acrescenta.
Defendendo que os títulos nobiliárquicos não se confundem nem com nobreza nem com aristocracia, os juízes da Relação reconhecem que as honrarias foram extintas por lei logo em 1910. Contudo, ressalvam, “encontram-se diversas disposições que reconhecem o seu uso em determinadas circunstâncias, não podendo deixar de se lhes atribuir alguma relevância jurídica no contexto de afirmação e de defesa do nome”. Uma vez que até os pseudónimos gozam de protecção legal, também os bem nascidos devem poder impedir que lhes usurpem os seus títulos ou os usem sem o seu consentimento, argumentam os juízes. Quanto ao princípio da igualdade estabelecido na Constituição portuguesa - segundo o qual ninguém pode ser privilegiado ou prejudicado em função de características como a sua ascendência, situação económica ou orientação sexual - não o dão por violado com a sua decisão: “O cidadão possuidor de título honorífico tem, perante o sistema jurídico vigente, precisamente os mesmos direitos e os mesmos deveres de qualquer cidadão que o não seja”.
Mas o que ganha, afinal, o 13.º Conde de Oeiras em proibir a marca de vinho? Ignora-se. D. Sebastião José de Carvalho Daun e Lorena não se mostrou disponível para responder ao PÚBLICO.
“Pode querer negociar com a câmara para obter dinheiro”, equaciona o ex-vereador José Ferreira de Matos. Foi Ferreira de Matos quem teve a ideia de chamar conde ao vinho que se produzia na Estação Agronómica de Oeiras, que até aí apenas tinha a designação genérica de vinho de Carcavelos, e de investir na sua produção, estava Teresa Zambujo à frente da autarquia. “O conde devia era sentir-se honrado por alguém ter colocado o seu nome num vinho de prestígio”, critica.
José Ferreira de Matos recorda-se de ter recebido uma autorização escrita do descendente do Marquês de Pombal antes de ter dado entrada com o pedido de registo da marca. Mas o nobre queixoso, que chegou a ser entronizado na confraria do vinho de Carcavelos (ver foto) assegurou ao tribunal que só mais tarde, em 2009, permitiu que usassem o seu título, e só em 500 garrafas.
Os juízes da Relação consideram precisamente que o Instituto da Propriedade Industrial procedeu mal ao aceitar o registo do Conde de Oeiras, uma vez que na altura o Código da Propriedade Industrial em vigor estabelecia que brasões ou distinções honoríficas só podiam ser usados como marcas por quem a eles tivesse direito. “Defender que pode constituir motivo de anulação do registo de uma marca a mesma conter título nobiliárquico significaria reconhecer o direito de poder haver ingerência na vida económica com fundamento nesse título, quando a lei não reconhece ao titular desse título o direito de o usar”, havia determinado antes o Tribunal da Propriedade Intelectual, que funciona como uma primeira instância judicial. Acontece que os seus colegas da Relação entendem que a alteração legal que, em 2007, retirou direitos aos nobres no que respeita ao uso dos seus títulos em matérias de registo civil é inconstitucional.
Foi no reinado de D. José I, e sob forte influência do primeiro Conde de Oeiras, Sebastião José de Carvalho e Mello e Marquês de Pombal, que o vinho produzido na sua quinta em Oeiras conheceu o seu apogeu, conta a câmara na sua página na Internet. “Graças à sua qualidade e particularidades iniciou o seu percurso além fronteiras, tendo sido enviado à corte de Pequim como presente, por D. José”, refere a mesma nota explicativa. Em princípios do séc. XIX, aquando da sua estadia em Portugal para comandar as forças militares luso-britânicas contra o exército napoleónico, o Duque de Wellington provou-o e deu-o às tropas inglesas, que o tornaram conhecidos num dos maiores mercados internacionais.
Nem memórias de Salazar, nem que se lixe a troika
Não é a primeira vez que a nobreza se dá mal com o vinho. D. Lopo de Bragança, 7.° Marquês de Marialva, também viu em 1997 o Tribunal da Relação dar-lhe razão quando se opôs ao registo da marca Marquês de Marialva. “O nome e os títulos (académicos, profissionais ou nobiliárquicos), sendo uma dimensão da identidade pessoal, encontram, em Portugal, tutela constitucional e legal”, escreveram então os juízes. Ou seja, explica um jurista que se debruçou sobre estas questões, António Menezes de Cordeiro, o direito português reconhece e protege os títulos nobiliárquicos, “de acordo com as suas próprias regras republicanas”.
“Para além de poderem constituir um elemento identificador de uma família ou pessoa, podem ter um significado importante no aspecto cultural e memória de um povo”, refere o mesmo acórdão. Menezes de Cordeiro fez uma resenha histórica: “Enquanto designações honoríficas, os títulos nobiliárquicos são inóquos para os regimes republicanos. Em compensação, comportam uma dimensão histórico-cultural que as próprias repúblicas, passada a fase mais contundente da sua afirmação revolucionária, têm interesse em salvaguardar”.
Embora por motivos distintos, dissabores do mesmo género teve o presidente da Câmara de Santa Comba Dão quando quis registar um vinho intitulado Memórias de Salazar: o Instituto da Propriedade Industrial alegou que a marca continha "elementos susceptíveis de pôr em causa a ordem pública" e de ofender a consciência colectiva. No ano passado o Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto também não autorizou o psiquiatra e histórico socialista Eurico Figueiredo a chamar Que Se Lixe a Troika ao vinho que produz na região demarcada do Douro, por entender que semelhante marca iria “prejudicar o carácter distintivo ou o prestígio da denominação de origem."