Fugas - Vinhos

Bruno Simões Castanheira

Opinião: Bacalhôa, um elogio ao Moscatel de Setúbal

Por Rui Falcão

O vinho Moscatel de Setúbal continua a ser quase desconhecido para a maioria dos consumidores nacionais e internacionais, continua a ser o eterno esquecido da lista de generosos portugueses. Por razões nem sempre fáceis de decifrar continua a ser injustiçado e ignorado por uma imensa maioria permanecendo longe dos holofotes da crítica e dos favores dos enófilos.

O Moscatel de Setúbal sempre foi recatado e frequentemente pouco ambicioso na divulgação, escudando-se numa divulgação meramente caseira e muito regional que raramente ultrapassa de forma consistente as fronteiras de Portugal. Não ajuda que muitos outros países do mundo produzam vinho Moscatel e que exista uma enorme diversidade de estilos entre países e regiões. Ao coexistirem muitos estilos de Moscatel pelo mundo fora e, infelizmente, muitos exemplos negativos da casta, o nome Moscatel sai confuso e desfavorecido. Para além de Portugal a tradição do vinho Moscatel estende-se a Espanha, Itália, Grécia, França, Chipre, África do Sul, Austrália, Brasil, Argentina e uma mão cheia de outros países.

Apesar da dificuldade de afirmação internacional alguns nomes conseguiram sobressair elevando-se à condição de referência internacional no estilo. Em Portugal a Bacalhôa é um dos nomes que mais dignifica o estilo elevando o nome da região e do Moscatel de Setúbal à elite do vinho nacional e internacional. São mais de trinta anos de trabalho intenso em prol do Moscatel, quase um terço de século de trabalho dedicado e primoroso ao serviço da construção da fama do Moscatel de Setúbal. A saga do Moscatel de Setúbal na Bacalhôa começou em 1983, numa viagem recheada de sucessos e alegrias, uma travessia de venturas e aventuras que não para de nos surpreender com a alegria dos resultados.

Para além das pessoas, do imenso capital humano, do talento de Filipa Tomaz da Costa, o outro grande trunfo da Bacalhôa são as magníficas vinhas plantadas na Serra da Arrábida, terroir de excelência da casta. Vinhas de rara beleza favorecidas por um enquadramento paisagístico excepcional com os altos da Serra da Arrábida na retaguarda, vinhas que evidenciam uma imagem de tranquilidade e serenidade que os vinhos mais tarde vêm confirmar. As vinhas estão espalhadas em diferentes localizações ao longo da serra, vinhas de várias as idades e diferentes exposições. Todas elas semeadas em localizações privilegiadas, no coração da Serra da Arrábida, plantadas em solos calcários e altitudes mais elevadas que privilegiam a retenção de acidez e consequentemente da frescura de aromas. E é aqui, no sopé da serra, numa das vinhas da Bacalhôa, que se encontra a maior mancha contínua de Moscatel Roxo, esse ex-libris da viticultura nacional.

O espólio estende-se por diversas marcas e acabamentos, começando num genérico JP Moscatel de consumo distraído, engarrafado ao terceiro ano, de perfil maduro e aromas intensos de casca de laranja cristalizada, mel e passas e boca melíflua. Ainda mais interessantes são os Bacalhôa Moscatel e o Bacalhôa Moscatel Roxo, ambos vinhos com data de colheita identificada no rótulo. Vinhos Moscatel que refletem de forma fiel as vicissitudes e profecias de cada ano agrícola, vinhos que expressam perfis levemente diferentes a cada nova edição. Um dos exercícios possíveis e extremamente enriquecedores passa por provar em paralelo os Bacalhôa Moscatel e Moscatel Roxo da mesma colheita para descobrir as diferentes nuances aromáticas de cada casta, as pequenas e grandes diferenças entre o Moscatel e o Moscatel Roxo. Um exemplo de como a Bacalhôa deixa expressar de forma autêntica e única a casta, o ano e o terroir numa expressão feliz do verdadeiro carácter do Moscatel.

E, finalmente, temos o vinho maior da Bacalhôa, um vinho de meditação e introspecção, um vinho extraordinário capaz de proporcionar um prazer ímpar, o Bacalhôa Moscatel de Setúbal 20 Anos 1983. A menção dupla no rótulo do ano de colheita e dos 20 anos de estágio poderá parecer imprecisa ou eventualmente contraditória mas obedece a uma vontade explícita de assegurar o ano de colheita e de garantir que o estágio em pipas tardou mesmo os vinte anos indicados a completar. O futuro irá providenciar outras edições especiais a ser engarrafadas no final de vinte anos de estágio em barricas... embora não seja impossível ver um futuro engarrafamento desta mesma colheita ao final dos trinta anos de estágio nos armazéns da Bacalhôa. Este Moscatel de 1983, a primeira colheita da casa, mostra-se fresco e incrivelmente complexo, com agradáveis observações florais, frutos secos, nozes, balsâmicos e casca de laranja. Um autêntico deleite para os sentidos.

Os Moscatel da Bacalhôa são vinhos originais, especiais, diferentes do padrão tradicional da região. Por um lado porque envelhecem em pequenas barricas de carvalho americano, barricas de 180 litros de capacidade, barricas de madeira usada e sem nenhuma das manias da madeira nova, barricas anteriormente usadas na maturação de Whisky de malte escocês. Pequenas barricas importadas da Escócia onde se guarda o vinho e que permanecem escondidas numa antiga estufa de plantas que forma um longo corredor que estimula de forma eloquente o envelhecimento dos Moscatel num processo lento e completamente natural.

Um armazém especial que regista amplitudes térmicas extremas, condições que permitem um envelhecimento comparativamente semelhante ao proporcionado pelos velhos navios veleiros nas viagens entre os dois hemisférios. Resultam daqui vinhos mais concentrados, intensos e violentos que o habitual com uma expressividade que chega a ser impressionante. Vinhos doces, por vezes muito doces, mas que graças à acidez fortíssima e penetrante que os envolve acabam perfeitamente equilibrados, com uma perspectiva de uma longa vida pela frente. Vinhos de carácter e rigor, sensuais e voluptuosos que atestam os encantos do Moscatel.

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