Fugas - Vinhos

Whiskies: Há algo de (muito) bom no reino da Dinamarca

Por João Palma

Num país sem quaisquer tradições na matéria, um grupo de nove amigos, sem experiência prévia, aventurou-se a produzir whisky. O resultado: uma surpresa e a inscrição da Dinamarca no mapa dos países produtores de grandes whiskies.

O improvável, por vezes, acontece. E pode originar surpresas muito agradáveis, como é o caso dos whiskies produzidos numa minúscula destilaria em Stauning, um lugarejo perdido na Jutlândia, a parte continental de um pequeno país, a Dinamarca. E o mais singular é que o grupo de nove amigos que encetou esta aventura não tinha quaisquer conhecimentos sobre a produção de whisky, partilhando apenas o gosto pela bebida.

Com diferentes profissões, tais como professor, talhante, piloto, médico ou chef de cozinha, e idades entre os 30 e 50 anos, um dia, em Maio de 2005, os nove começaram a interrogar-se por que razão, havendo água, centeio, cevada de boa qualidade e um clima similar ao da Escócia, não se produzia whisky na Dinamarca. Da conversa à prática, puseram mãos à obra para tentarem produzir um whisky que obedecesse aos históricos princípios escoceses de produção.

Tudo começou nas instalações que o talhante possuía e que constituíram a base inicial das operações. Aí, em Agosto de 2006, produziram o primeiro whisky. Em Novembro de 2007, compraram uma pequena quinta na aldeia de Stauning, não longe da costa Oeste da península da Jutlândia, perto do fiorde de Ringkoebing, com influência do ar marítimo e muito distante de qualquer indústria poluidora do solo ou do ar, e transformaram-na na actual destilaria.

Começaram literalmente do zero, socorrendo-se até do Google para saber como se fazia whisky. Estabeleceram como princípio que só produziriam whisky de malte (e não o blended que os escoceses consideram uma mistela unicamente para exportação). Sem qualquer experiência prévia, isso constituiu um desafio e, ao mesmo tempo, originou soluções inovadoras, embora sempre respeitando os métodos mais tradicionais de destilação.

Encontro marcante

No Outono de 2006, houve algo que transformou um hobby de amadores — actualmente, dois dos nove componentes do grupo fundador trabalham a tempo inteiro na destilaria — num caso sério de fabrico de whisky. Os nove amigos conheceram o especialista inglês Jim Murray, editor da Whisky Bible, a mais reputada publicação especializada em whiskies a nível mundial, e deram-lhe a provar o resultado das suas experiências, na esperança de obter uma avaliação favorável. Para espanto deles ? e do próprio Jim Murray ?, o especialista considerou os whiskies dinamarqueses como dos melhores entre os melhores e incentivou-os a prosseguir a aventura e a expandir a produção.

Isso deu origem a um plano para produzir anualmente entre seis e oito mil litros de whisky. Em comparação com os milhões de litros que são comercializados por grandes destilarias, os números são irrisórios, mas os responsáveis dinamarqueses fazem questão de se manter fiéis ao princípio em que se baseia o fabrico do whiskyStauning: pouco, mas (muito) bom.

Os processos de fabrico são artesanais e respeitam o mais possível a tradição: por exemplo, os alambiques são aquecidos por bicos de gás, em vez da mais moderna utilização de serpentinas com vapor de água, com a qual se obtém maior número de litros de destilado, mas de qualidade inferior, na opinião dos produtores dinamarqueses. Isso não exclui algumas soluções originais e inovadoras nas diversas fases do fabrico para melhorar a excelência do produto final. Nas visitas guiadas às instalações, conduzidas pelos próprios, torna-se evidente que estamos muito mais perante um caso de amor e de dedicação à causa de criar whiskies premium do que um mero meio para ganhar dinheiro.

A confirmar a qualidade dos Stauning estão as suas classificações pela Whisky Bible. Por exemplo, a mais baixa classificação recebida por um whisky Stauning foram os 77 pontos em 100 atribuídos ao Stauning Young Rye de Junho de 2013. Embora essa pontuação já seja bastante boa, os responsáveis da destilaria Stauning reconhecem humildemente que ainda têm muito que aprender e reforçam a sua noção de que não é fácil fazer um bom whisky, de saber exactamente qual a parte da destilação que constitui o “coração”, eliminando com precisão os sabores desagradáveis da “cabeça” e o gosto insípido da “cauda”. E como tradição pode perfeitamente casar com inovação, estão a trabalhar em conjunto com um especialista em sabores da universidade dinamarquesa de Aalborg para refinar o processo e fazer os cortes na destilação no momento exacto.

Em contraponto com aqueles 77 pontos, registe-se os 94,5 pontos atribuídos ao Stauning Single Malt Whisky – Peated 2nd Edition, bem como os 96 pontos do Stauning Young Rye (medalha de platina) e os 93 pontos do Stauning Single Malt Peated 2nd Edition (medalha de ouro) conquistados em 2013 nos Prémios International Review of Spirits, em Chicago (EUA).

Alambiques, só portugueses

No caso dos alambiques de cobre, requeridos para a produção de whisky de qualidade, descobriram um fabricante em Portugal. Só que esses alambiques não satisfaziam inteiramente os parâmetros que os amigos achavam imprescindíveis para uma destilação com os predicados necessários.

Assim, tiveram de vencer a relutância inicial do fabricante, enviando-lhe desenhos do tipo de alambique modificado que queriam. Após alguma reflexão e estudo dos desenhos, foi-lhes dito que afinal era possível fazer alambiques de acordo com as suas especificações. O curioso é que, posteriormente, o fabricante português já produziu e vendeu vários alambiques de desenho dinamarquês.

À excepção dos alambiques e dos barris de carvalho americano, tudo o resto é de origem local e de primeiríssima qualidade: o centeio, a cevada e a turfa utilizada para fumar o malte em alguns tipos de whisky.

Um whisky, para ser considerado como tal, tem de ser envelhecido, no mínimo, durante três anos em barris de carvalho. Neste caso particular, a maturação inicial é feita em barris que foram utilizados primeiramente para envelhecer whisky americano. Numa segunda fase, em alguns dos tipos do Stauning whisky, também são usados barris que serviram previamente para armazenar xerez.

A turfa para fumar a cevada ou o centeio maltado também é extraída localmente. A maior parte das pessoas que fazem a extracção já estão na casa dos 70 e até 80 anos de idade e, quando lhes foi revelada a quantidade de turfa que seria necessária para manter a produção, engoliram em seco. Por isso, para minorar o problema e juntar o útil ao agradável, está-se a estudar a hipótese de convidar os visitantes da destilaria, se desejarem, a ter uma experiência de extracção de turfa, participando assim na produção do whisky.

Vacas loucas

Uma curiosa história paralela a esta do whisky tem origem no aproveitamento dos restos da fermentação. Um dos agricultores que fornece a cevada e o centeio para a produção do whisky também cria vacas e complementa-lhes a alimentação com a massa resultante da primeira destilação, com um teor alcoólico a rondar os 7%. As vacas habituaram-se a isso, que consideram uma iguaria, e é vê-las loucas a correr atrás do lavrador, quando este chega com os recipientes com os restos de cereais fermentados.

Foi então que os amigos dinamarqueses se lembraram das vacas japonesas, em que a alimentação também é complementada com cerveja e cujos bifes atingem valores astronómicos, a rondar os 100 euros. Tendo falado nisso ao lavrador, este, com uma mentalidade muito terra-a-terra típica dos camponeses, comentou: “É preciso ser-se muito maluco para dar 100 euros por um bife!”

No entanto, feitas as conta e pesados os prós, em Stauning está-se a pensar vender, em paralelo com o whisky, a carne dessas vacas sem qualquer intuito de lucros próprios, apenas para ajudar o lavrador e porque consideram a ideia tão interessante quanto a de inscrever a Dinamarca no mapa dos whiskies.

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