Fugas - Vinhos

Ne Oublie, um vinho de 5500 euros que não se esquece

Por Pedro Garcias

Os Symington vão lançar um vinho de 1882 para celebrar a chegada do pioneiro da família a Portugal. Chama-se Ne Oublie, o lema original da Graham’s, e vai custar 5500 euros. O luxo chegou ao vinho do Porto e ainda bem.

Esta é a história de um vinho que é ao mesmo tempo a história de uma família e de uma região. O seu nome, Ne Oublie, tem sonoridade francesa, mas na sua origem corre sangue escocês e português. Quem o beber sem conhecer o que ele esconde, como chegou até nós, não desfrutará devidamente desse momento único, porque Ne Oublie é mais do que um vinho formidável, é uma jóia de família, uma relíquia histórica e cultural.

O custo de cada garrafa pode assustar: 5500 euros. Nenhuma bebida vale 5500 euros, embora tudo mude quando essa bebida é um vinho do Porto do final do século XIX e o vinho venha num decanter numerado, feito à mão, em cristal soprado, por mestres vidreiros da fábrica portuguesa Atlantis, com três anéis de prata moldados e gravados pelos ourives escoceses Hayward & Stott e guardado numa caixa de couro especialmente desenhada e produzida à mão pela famosa marca britânica Smythson, da Bond Street. Neste caso, já não estamos a falar só de uma bebida, mas sim de um produto de luxo, raro e exclusivo. “Se o vinho do Porto não consegue ter um produto ao nível da Hermès, da Cartier ou da Louis Vuitton, significa reconhecer que estamos num segundo nível”, justificava Paul Symington, na cerimónia de lançamento do Ne Oublie, no passado dia 25 de Junho, nas caves da Graham’s, em Gaia.

Paul é o homem que está à frente dos destinos da principal família do vinho do Porto. Líder de vendas nas categorias especiais, os Symington são detentores das marcas Graham’s, Warre’s, Dow’s, Cockburn’s, Smith Woodhouse, Quinta do Vesúvio, Martinez, Gould Campbell e Quarles Harris e possuem mais de 1000 hectares de vinhas no Douro. Este império e o elo emocional que a família mantém com o Douro começaram a ser construídos em 1882, quando o escocês Andrew James Symington, então com 19 anos, chegou a Portugal para trabalhar na Graham’s, outra família escocesa já há muito estabelecida no país e que, na altura, se dedicava à fiação de algodão. Ao fim de dois anos a trabalhar nesse ramo, Andrew entrou no negócio do vinho Porto por conta própria, conquistando em pouco tempo uma grande reputação como provador. Em 1891 casou-se com Beatrice Atkinson, filha de Maria José de Sousa e Barros Leitão de Carvalhosa e do comerciante de vinho do Porto John Whiteley Atkinson.

Andrew casou bem. Por via da mulher, conquistou uma linhagem com ligações ao vinho do Porto que remontava a meados do século XVII e ainda o respaldo do sogro para prosseguir com o seu negócio. Em 1905, Andrew tornou-se sócio da Warre’s & Co., a mais antiga companhia britânica estabelecida em Portugal. Alguns anos depois, já era o único proprietário. Em 1912, aliou-se a George A. Warre, o principal acionista da Dow’s, com quem fez uma permuta de acções, através da qual Andrew passou a deter 30% do capital da Dow’s, ficando também responsável pela gestão das caves e das vinhas da empresa, uma vez que George decidira regressar a Inglaterra.

Em 1920, Andrew James Symington comprou a um produtor do vale do rio Torto, entre o Pinhão e São João da Pesqueira, quatro pipas de um vinho do Porto de 1882, o ano da sua chegada a Portugal. O vinho tinha que ser bom, face ao simbolismo do ano de colheita e ao prestígio de Andrew enquanto provador. Depois de quase 40 anos a envelhecer no Douro, as pipas foram levadas para os armazéns da Dow’s, em Vila Nova de Gaia.

Palavras para quê?

Por ano, uma pipa perde cerca de 1% do vinho, por evaporação — é a chamada quota dos anjos. A certa altura, com a evaporação e os atestos que foram sendo feitos, sempre com o mesmo vinho, as quatro pipas ficaram reduzidas a três e só não diminuírem mais porque no meio desta história o vinho foi transferido para pipas mais pequenas.

Andrew foi envelhecendo com o vinho. Morreu em 1939, no início da II Guerra Mundial, cujos efeitos na economia inglesa quase ameaçaram a sobrevivência do negócio da família. Mas no vinho do Porto só vingam aqueles que olham para o negócio a longo prazo, para além da própria existência de quem o dirige no momento. Os Symington têm essa sabedoria, esse distanciamento existencial, e, acima de tudo, possuem um sentido de família muito forte que os torna mais resistentes às adversidades.

Não só sobreviveram à II Guerra Mundial como continuaram a crescer. Em 1961, os Symington passaram a deter a totalidade do capital da Dow’s e, em 1970, compraram a Smith Woodhouse e a Graham’s. A mesma Graham’s que dera emprego a Andrew James, o pioneiro, e cujo lema empresarial era “Ne Oublie” (Não esquecer).

E assim se fecha o círculo deste vinho — não da saga dos Symington, que, já neste século, compraram a Cockburn’s e mais algumas quintas. Para celebrar o início da história, a família decidiu encher 656 garrafas com o vinho que Andrew Symington comprou em 1920. Seiscentas e cinquenta e seis garrafas é o vinho de uma pipa. As duas que sobram, como sublinhava Paul Symington, ficam guardadas para as próximas gerações.

Ne Oublie é um manifesto de preservação da memória familiar e é também um hino ao Douro e aos homens e mulheres que ajudaram a construir a mais extraordinária região vinícola do mundo. Como vinho, encaixa-se na mais pura tradição duriense, a tradição do Tawny, do vinho “generoso” que é guardado em pipas e vai passando de geração para geração. Está na linha do Scion, o vinho com 155 anos que a Taylor’s lançou em 2010 a 2500 euros a garrafa (foi comprado dois anos antes a uma família de Prezegueda, junto à Régua). Apesar do preço elevado, o vinho foi um sucesso e criou um fenómeno de imitação no sector. De um momento para outro, surgiram no mercado vários vinhos do Porto muito velhos a preços nunca vistos. O último a ser lançado foi o Taylor’s Single Harvest 1963, um dos vinhos que esta empresa herdou com a compra, o ano passado, da Wiese & Krohn, uma pequena casa familiar especializada em Porto Colheitas. Também envolvidas num estojo de luxo, cada uma das 1650 garrafas postas à venda custa três mil euros.

Com o Ne Oublie, os Symington colocaram a fasquia num patamar ainda mais alto. Mas, bem vistas as coisas, 5500 euros é mais ou menos o preço de uma garrafa de Porto Vintage Noval Nacional de 1963 (sem embalagem de luxo); e há vinhos bastante mais novos de Bordéus e da Borgonha que ainda custam mais — e não são tão bons. Ne Oublie está longe, pois, de ser uma excentricidade.

São vinhos como estes, exclusivos e apresentados luxuosamente, mesmo ao nível promocional (o filme é de uma beleza comovedora), que mais elevam a fama do vinho do Porto no mundo. Descrevê-los é um exercício inútil. Não há, aliás, forma de o fazer com o Ne Oublie. Haverá quem lhe destaque o aroma do mel acabado de retirar do favo, a doçura agridoce da laranja já ligeiramente passada, o sabor delicado e complexo, a macieza, o fim de boca vigoroso e interminável. Mas um vinho de 1882 que chega até nós inteiro, ainda cheio de vitalidade, com toda a sua riqueza original reduzida a uma essência delicada e voluptuosa que impregna o ar, o copo e as mãos e se prende à nossa memória com a mesma força das nossas lembranças mais felizes, não precisa de palavras. Basta saboreá-lo e agradecer a quem o fez e o preservou durante tanto. Guardá-lo para o exibir como um pavão é uma heresia e um desperdício. Até porque, ao contrário de um Vintage, um Tawny não melhora depois de ser engarrafado.

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