Fugas - Vinhos

BRUNO SIMÕES CASTANHEIRA

Opinião: Manipulação genética no vinho?

Por Rui Falcão

A manipulação genética é uma controvérsia perante a qual poucos conseguem permanecer indiferentes ou simplesmente neutrais, um assunto que desperta amores, receios e desconfianças à maioria da população e, por inerência, também ao grupo mais restrito que gravita em redor do vinho, sejam eles enófilos, críticos, enólogos ou produtores.

Não é fácil discorrer sobre um tema que desperta tanto medo e incómodo, tanta paixão e perturbação. O tema é frequentemente debatido em surdina, quase a meia-luz, dissimulado e camuflado sob a suavidade de um sussurrar, sempre subjugado ao desejo de não querer levantar qualquer ondulação, de não perturbar o consenso quase universal de grande parte da sociedade científica. Ou então, por oposição directa à contemporização douta, o tema é envolvido num discurso repleto de agitação e hiperbolizações, inflexões de alertas que sobressaltam para os perigos imediatos e futuros de pretender condicionar a natureza.

Discursos suportados quase invariavelmente num registo meio histérico que se deixa enredar nas emoções mais primitivas, inflamando o discurso com alertas de alarme social, estridores desequilibrados que gostam de agitar os medos mais grosseiros e ancestrais da civilização, por vezes em desvarios pouco transparentes e pouco ou nada perspicazes. A manipulação genética é uma controvérsia perante a qual poucos conseguem permanecer indiferentes ou simplesmente neutrais, um assunto que desperta amores, receios e desconfianças à maioria da população e, por inerência, também ao grupo mais restrito que gravita em redor do vinho, sejam eles enófilos, críticos, enólogos ou produtores.

Curiosamente, apesar do debate mais ou menos insistente que a sociedade mantém sobre a manipulação genética em elementos vegetais e animais, pouco se fala, pouco se questiona e pouco se transmite sobre a investigação e eventuais práticas de manipulação genética sobre a videira e, por causa directa, da sua consequência no vinho. Não será razoável acreditar que, apesar de pouco se falar sobre o assunto, e apesar da ausência quase total de discussão sobre os seus efeitos na vinha e no vinho, este universo se mantenha imune a experimentações de manipulação genética. A vinha e o vinho não serão naturalmente motivos de excepção para o interesse industrial, financeiro e comercial que a indústria biológica detém sobre a manipulação genética e emissão e comercialização das patentes respectivas.

Existem estudos sobre as várias vertentes da manipulação genética e a prática está sancionada e regulamentada pela União Europeia. A investigação segue em velocidade de cruzeiro dentro da União Europeia. Mas são alguns dos países do novo mundo, com os Estados Unidos da América à cabeça, que lideram as investigações do sector, abraçando com fervor esta nova perspectiva da viticultura e enologia, uma tendência simultaneamente inovadora e assustadora.

A oposição aos avanços da ciência e experimentação nesta área é severa, sendo liderada por um grupo relativamente alargado de produtores, alguns deles brilhantes e mundialmente famosos, maioritariamente de origem francesa e italiana. Produtores que insistem na manutenção e preservação da diversidade e biodiversidade da vinha, produtores que defendem acaloradamente a manutenção e supremacia dos valores da natureza sobre o critério mais arbitrário e economicista do homem. O tema é claramente fracturante e os pontos de vista de cada um dos lados da barreira moral e científica são naturalmente antagónicos.

Os correligionários da manipulação genética aventam princípios filosóficos que por vezes se misturam com princípios ecológicos ou outros de índole mais prática que incluem a facilidade na luta contra as pragas da vinha, aliviando deste modo a necessidade de recurso a pesticidas e outros tratamentos sanitários potencialmente agressivos para o ambiente. A investigação e manipulação genética de estirpes de leveduras que permitam fermentações e maturações extremamente rápidas que possam potenciar a rentabilização das operações na adega é outro dos grandes capítulos de interesse para os partidários activos da manipulação genética.

Os detractores apontam para o perigo da perda de biodiversidade e para os riscos potenciais a que o desconhecido sempre remete. Independentemente das posições deontológicas e morais que cada um advogue, independentemente das posturas pessoais, a perda da biodiversidade é claramente um elemento em risco nesta disputa. A manipulação genética e o investimento científico são aplicados a um número muito reduzido de castas e leveduras, as mais populares e mais utilizadas, com as inevitáveis e indecorosas tentativas de registo de patentes de novas variantes genéticas. Os custos incrivelmente elevados inerentes a este tipo de investigação impedem que o desenvolvimento seja aplicado a toda e qualquer casta que se anuncie.

Corremos, pois, o grave e verosímil risco de a investigação se basear em pouco mais de uma dezena de castas, as mais mediáticas e conhecidas do grande público, reduzindo quase a zero o resultado de séculos de evolução da natureza. Por outras palavras, incorremos no perigo muito real da padronização e normalização do vinho, na transformação do vinho num produto igual e uniformizado, num produto meramente industrial e previsível sem relação directa com os elementos e com o terroir. Corremos o risco de perder um património ampelográfico valiosíssimo desprezando a diferença e a originalidade, risco ainda mais evidente para os vinhos portugueses que vivem da originalidade das castas nacionais.

A manipulação genética poderá não limitar o seu raio de acção à protecção perante doenças crónicas. Poderá também funcionar como potenciador de aromas e comportamentos vegetativos não inatos, acrescentando méritos aromáticos e gustativos ausentes da casta. O risco de converter o vinho numa bebida sem correlação directa com a vinha é um perigo real que nem sempre é percebido. Estaremos então próximos do primeiro vinho produzido com uvas geneticamente modificadas? Provavelmente não, tendo em conta uma opinião pública maioritária na rejeição do conceito e filosofia intrínsecas. Mas o futuro parece abrir portas a esta opção, uma tendência quase inevitável, mesmo que temida e rejeitada por muitos.

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