Fugas - Vinhos

O champanhe será inglês?

Por Rui Falcão

Raros são aqueles que pensaram alguma vez colocar em causa a paternidade do champanhe, hesitar perante a certeza que os vinhos espumantes são uma criação francesa. Mas, por muito improvável que possa soar, os argumentos históricos mais verosímeis apontam para uma paternidade inglesa em lugar da francesa.

Poucos nomes serão tão ilustres e consensuais como champanhe, o vinho efervescente da região francesa homónima de Champagne que ilustra como poucos a representação primorosa da alegria, êxito, luxo e exclusividade. Como muitos foram afirmando ao longo da sua extensa história, o champanhe deve ser bebido nos momentos de alegria e tristeza, em comemoração de vitórias ou em consolo de derrotas. Lilly Bollinger costuma sugerir que o champanhe deveria ser bebido unicamente em momentos de alegria ou de tristeza, em momentos de solidão ou na companhia de amigos ou familiares, nos momentos em que o apetite aperta ou nos dias de penúria, quando a sede ataca… ou simplesmente, porque sim.

Vinhos extraordinários que, apesar das imitações de qualidade mais do que aceitável que irrompem um pouco por todo o mundo, cava, prosecco, sekt e alguns espumantes portugueses incluídos, vendidos quase universalmente a preços muito mais comedidos que o champanhe original, conseguem manter uma aura e prestígio inigualáveis. No preço reside mesmo uma das qualidades mais eloquentes do champanhe, pelo menos segundo a perspectiva dos viticultores e produtores da região, que conseguem vender as suas uvas e os seus vinhos a preços médios estratosféricos, preços a que nenhuma outra região internacional consegue sequer aspirar.

Os produtores de champanhe conseguiram não só impor uma imagem de grandeza e pompa para toda a região, mesmo para os produtores mais humildes, como conseguiram a proeza de dissimular o tamanho colossal de muitos dos rótulos mais exclusivos. A maior conquista de champanhe, ainda maior que a conservação dos preços elevados ou a instituição da imagem de sumptuosidade, luxo e folia, é a inteligência de produzir milhões de garrafas de alguns dos rótulos mais caros e cobiçados do mundo, mantendo em paralelo uma auréola de exclusividade em vinhos de que são produzidos milhões de garrafas… todas elas muito caras.

Não haverá bebida mais francesa que o champanhe e não haverá emblema mais proveitoso para a imagem e o imaginário internacional francês que os vinhos de Champagne. A maioria já terá lido ou ouvido em algum instante, com maior ou menor detalhe, histórias sobre a criação dos vinhos de Champagne, sobre a descoberta mais ou menos acidental de como elaborar vinhos com pequenas bolhas de gás. A lenda amplamente patrocinada pelas autoridades de Champagne e pelo produtor homónimo ensina que o champanhe teria tido origem na Abadia de Hautvillers, em Epernay, graças ao esforço, dedicação e experimentação do abade Dom Pérignon, que em 1668 teria finalmente compreendido e deslindado as práticas enológicas para conseguir elaborar vinhos efervescentes de forma continuada.

Aceitando mais ou menos minudências na história, mantendo uma dose superior de cepticismo ou uma dose mais emotiva de inocência, associando o champanhe a Dom Pérignon ou mantendo-se longe das lendas, raros são aqueles que pensaram alguma vez colocar em causa a paternidade do champanhe, hesitar perante a certeza que os vinhos espumantes são uma criação francesa. E no entanto, e por muito improvável que tal possa soar, os argumentos históricos mais verosímeis apontam para uma paternidade inglesa em lugar da francesa.

O invento inglês sobre o método de elaboração de vinho espumante terá tido lugar uma ou duas décadas antes da data indicada pelos franceses como sendo a data da descoberta oficial dos vinhos espumantes. Com será compreensível, os franceses disputam esta teoria, que consideram ridícula, mantendo como seguro que o vinho espumante será não só uma criação de Champagne como um dos momentos de glória dos franceses.

Existe, no entanto, documentação inglesa datada de 1662, publicada por Christopher Merret seis anos antes da descoberta “oficial” da criação dos vinhos espumantes por Dom Pérignon, que descreve e particulariza de forma especialmente detalhada o processo enológico seguido por alguns dos principais comerciantes ingleses para induzir uma segunda fermentação em garrafa nos vinhos importados de Champagne de modo a elaborar um vinho espumante. Neste ensaio publicado pela Royal Society, Christopher Merret descreve não só os aspectos técnicos fundamentais para a segunda fermentação em garrafa como aborda algumas das premissas históricas que teriam fundamentado esta descoberta inglesa.

Devido à enorme fragilidade e delicadeza dos vinhos tranquilos de Champagne, que não permitira o seu envio em casco, estes teriam começado a ser vendidos para Inglaterra directamente em garrafa em meados do século XVII, quando as primeiras garrafas de vidro começaram a conseguir a estar disponíveis. O clima frio da região e o engarrafamento precoce em vidro não permitia que os vinhos terminassem a fermentação. Quando a Primavera eclodia, e quando os vinhos estavam já a descansar em solo inglês, dava-se uma segunda fermentação, que se alimentava dos açúcares ainda disponíveis e não consumidos na primeira fermentação.

A maioria dos negociantes terá compreendido a química envolvida no processo e muito rapidamente terão começado a experimentar diferentes métodos para assegurar um método simples e consequente que permitisse replicar o processo de forma barata e consistente. E é precisamente esse procedimento que está descrito no tal documento de 1662, que refere de forma detalhada não só os cuidados a ter, incluindo a urgência de uma garrafa de vidro reforçada, como as melhores práticas para produzir uma segunda fermentação em garrafa fechada.

O que, a ser fidedigno, confirmaria os ingleses como os maiores criadores e divulgadores de vinhos em todo o planeta. Basta olhar para o rol de criações cuja ascendência inglesa é indiscutível e muito próxima, nomes como o vinho do Porto, vinho da Madeira, marsala ou champanhe. Para não falar da influência decisiva em vinhos tão ilustres como Bordéus ou Rheingau. Nada mau para um país que não é conhecido no mundo como produtor de vinho.

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