Fugas - Vinhos

  • Reserva Especial da Casa Ferreirinha de 2007
    Reserva Especial da Casa Ferreirinha de 2007
  • Luís Sottomayor, o responsável  enológico da Casa Ferreirinha,
    Luís Sottomayor, o responsável enológico da Casa Ferreirinha, Manuel Roberto

Um Reserva Especial entre os melhores de sempre

Por Manuel Carvalho e Pedro Garcias

A segunda marca da exigente gama da Casa Ferreirinha tem uma nova edição. E que edição. O ano de 2007 vai certamente ficar entre as melhores referências dos Reserva Especial, a par de vinhos míticos como os de 1997 ou 1989. Um grande vinho sobre o Douro, a enologia e o refinamento do tempo.

O conceituado crítico de vinhos britânico Hugh Johnson dizia que o carácter de um vinho se prova pela sua origem, que a qualidade resultava do talento dos enólogos e era consequência do aprimoramento que só o tempo concede.

Certamente haverá muitos vinhos tintos na terra capazes de comprovar a sapiência desta tese, mas quem quiser uma prova indiscutível sobre a sua validade deve provar o Reserva Especial da Casa Ferreirinha de 2007 que acaba de chegar ao mercado (o PVP oscilará entre 120 e 150 euros a garrafa). Está lá tudo.

O Douro, nos seus aromas florais, nas sugestões de odores de arbustos nas tardes quentes do Verão, mas também na imponência da sua estrutura, na voluptuosidade do seu corpo ou no frescor do seu final de boca; está lá a definição e o conceito de uma escola de enologia que tem décadas, que se sustenta numa herança de profissionais talentosos como Fernando Nicolau de Almeida e José Maria Soares Franco e se consolida com o rigor e a precisão de Luís Sottomayor; está também lá a consolidação e o refinamento que sete anos de barrica e de estágio em garrafa concedem ao vinho.

O mais recente Reserva Especial que a Casa Ferreirinha lança agora no mercado é um caso sério. Um daqueles vinhos capazes de prolongar por anos a fio a discussão sobre se devia ou não devia ser um Barca Velha (como escreve Pedro Garcias, já a seguir).

A começar, é uma bomba aromática, que apesar dos anos de evolução ainda consegue fazer prevalecer as expressões da fruta sobre os aromas terciários do envelhecimento. Esteva e rosmaninho, fruta preta, chocolate, pimenta e um vago indício de cedro são apenas alguns dos tons que exalam desta preciosidade. Na boca surge como uma explosão de sensações, com a tensão dos taninos a impor-se num primeiro momento, o sabor quente da fruta a prosseguir e a antecipar um final no qual a acidez e os taninos deixam um longo rasto de frescura e complexidade.

Podia ser um Barca Velha? Não interessa a interrogação. Certo é que este é um grande Reserva Especial, seguramente um dos grandes vinhos desta gama da Ferreirinha dos últimos anos. Fazendo uma retrospectiva, há-de partilhar uma identidade mais próxima do Reserva Especial de 1997 do que o seu antecessor mais imediato, o de 2003.

Porque este, mesmo sendo um grande vinho, mesmo estando ainda num estágio de evolução ainda muito preliminar, é um tinto marcado pelo clima quente desse ano. É um vinho opulento, assertivo e envolvente, mas sem aquela marca de sobriedade, de contenção e vetustez que colocam os vinhos da Casa Ferreirinha num campeonato à parte. Qualidades que, afinal, se repetem na edição de 1997, fazendo um vinho que é ainda hoje um primor de elegância, de frescura e de complexidade sem cair na tentação dos excessos com que, muitas vezes, algumas das grandes marcas se perdem.

Ainda assim, numa prova salteada pelas várias edições da gama que surge logo após o Barca Velha no exigente portefólio da Ferreirinha, é possível verificar que há um denominador comum. Se o Reserva Especial de 1992 é um vinho apesar de tudo mais curto que o habitual, resultado de ser feito em exclusivo com um lote de Touriga Nacional, as edições de 1986, de 1989 e de 1997 são o testemunho de uma extraordinária vocação para a longevidade.

A escolha dos lotes e das castas, a combinação do poder e da raça das uvas de baixa altitude com as que provêm de zonas mais frescas e com maior potencial de acidez, a intervenção da enologia na escolha ou no tempero da barrica fazem estes pequenos milagres aos quais é difícil ficar indiferente.

Quem gosta de vinhos com alguma idade, ou quem prefere tintos com mais garra e juventude, tem aqui um excelente pretexto para pôr tudo em questão. Porque o 2007 Reserva Especial tem o potencial aromático e a textura de um vinho muito jovem e até o 1986 é capaz ainda hoje de dar uma lição de sofisticação, nervo e profundidade a muitos vinhos acabados de sair da adega. Se isto não é testemunho de grandiosidade e de excelência, vá-se lá saber o que é a grandiosidade e a excelência nos vinhos.
(Manuel Carvalho)

Não é mas podia ser Barca Velha

O novo Ferreirinha Reserva Especial 2007 nasceu com pedigree de Barca Velha. Até há bem pouco tempo, Luís Sottomayor, o responsável enológico da Casa Ferreirinha e a quem cabe a decisão final, não tinha dúvidas de que estava ali mais uma colheita do melhor vinho tinto português.

O seu extraordinário aroma, muito Douro, e a profundidade e frescura que mostrava apontavam para Barca Velha. Mas a dada altura da evolução do vinho Luís Sottomayor notou que lhe faltava qualquer coisa para poder chegar lá. Não sabe explicar bem o quê. Talvez alguma falta de espessura no primeiro ataque de boca.

A excepcionalidade do Barca Velha 2004, o último a ser lançado, fornecia termos de comparação muito exigentes e, na dúvida, o que prevalece no final é a intuição, o feeling do enólogo. Apesar de serem ouvidas várias pessoas, a última palavra cabe sempre ao enólogo-chefe da Casa Ferreirinha, mesmo que essa decisão signifique uma perda de receita de milhões de euros para a empresa.

O Reserva Especial sai para o mercado a cerca de metade do preço do Barca Velha. O último Barca Velha saiu a 240 euros. Do Reserva Especial 2007 foram produzidas um pouco mais de 30 mil garrafas. É só fazer as contas. Mas é assim que se cria o prestígio de um vinho. Hoje, o Reserva Especial não é encarado como um parente pobre do Barca Velha, mas sim como um Barca Velha mais barato.

Provado à mesa já com a decisão tomada, voltam a aflorar as dúvidas, o mesmo dilema de sempre. Perante as evidências da sua enorme qualidade, Manuel e Fernando Guedes, dois dos membros da família que controla a Sogrape, questionam-se sobre se não foi um erro não ter declarado o Reserva Especial 2007 como Barca Velha.

Luís Sottomayor parece seguro da decisão tomada. Ninguém melhor do que ele conhece o vinho. Acompanhou-o desde que ainda era uva até chegar à garrafa, foi seguindo a sua evolução e, muito importante, nos 25 anos que leva como enólogo na Casa Ferreirinha, já lhe passaram muitos Barca Velha e Reserva Especial pelas mãos.

Não é fácil perceber que falta ao vinho “qualquer coisa por trás da boca”, como sugere. Mas, de facto, insistindo na prova percebe-se que há um pequeno hiato entre a exuberância do aroma e o arrebatamento final. Em vez de uma linha recta, desdobra-se mum sobe e desce sensorial. Falta-lhe a harmonia e a perfeição de nascença que um Barca Velha exige.

A um bom livro não lhe basta ter um grande começo e um grande final. Necessita de uma estrutura sólida e apelativa para agarrar o leitor. Os vinhos são um pouco assim. Mas têm nuances. Como possuem vida, o tempo vai-os depurando, afinando e enriquecendo e os melhores só ao fim de alguns anos é que atingem a perfeição (embora também haja livros que só ao fim de muitos anos alcançam o reconhecimento e a consagração gerais).

O Reserva Especial 2007 precisa dessa prova do tempo, o mesmo tempo que foi dado, por exemplo, ao Reserva Especial 1997. O vinho era tão bom que a Sogrape demorou dez anos a decidir se o declarava como Reserva Especial ou Barca Velha. Nunca a hesitação foi tão demorada. A empresa já tinha lançado o Barca Velha 1999, mas não seria a primeira vez que lançaria um outro Barca Velha mais velho.

Um ano depois de José Maria Soares Franco ter deixado a direcção enológica da Casa Ferreirinha, Luís Sottomayor teve que tomar a sua primeira grande decisão como enólogo principal e defendeu que o vinho fosse Reserva Especial. Em boa verdade, a opção também foi influenciada por razões de marketing. Anos antes, a Casa Ferreirinha tinha sido impedida pelo Instituto dos Vinhos do Douro e Porto de usar a expressão “Reserva Especial”. Em 2007, voltou a poder utilizar o nome original e nada melhor do que assinalar o regresso da histórica marca (o primeiro Reserva Especial data de 1962) com um vinho que podia ser Barca Velha.

Hoje, percebe-se que o Reserva Especial 1997 tem o que se associa a um Barca Velha: complexidade, riqueza, delicadeza e frescura. É um vinho distinto e cheio de carácter, de aroma finíssimo e com uma raça tânica e uma frescura admiráveis. Dezassete anos depois, tornou-se num ícone da Casa Ferreirinha. O tempo é um grande juiz, mas nem sempre a história termina bem. Basta ver o Reserva Especial 1992, feito apenas de Touriga Nacional. Sendo um vinho bastante bom, não merece a chancela Reserva Especial. No caso do 2007, a dúvida é de outra escala.
(Pedro Garcias)

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