Fugas - Vinhos

Adriano Miranda

Lote de colheitas, um desafio difícil de cumprir

Por Rui falcão

Portugal é um país de tradições vinícolas fortes, um dos países produtores clássicos, um país original que conservou muitos dos seus costumes e da sua forma peculiar de fazer vinho.

Essa originalidade manifesta-se em quase todos os passos do vinho, desde a viticultura à enologia, desde os pequenos detalhes até ao quadro mais genérico e amplo. Tanto a filosofia como as práticas portuguesas na vinha e na adega são profundamente diferentes daquela que é a realidade e normalidade internacional oferecendo formas alternativas de encarar o vinho.

A diferença sente-se em todos os campos e em todos os detalhes, tornando a análise do vinho português num exercício mais de procura de semelhanças que na procura do muito que nos diferencia dos restantes países produtores de vinho. Uma das diferenças fundamentais, mas seguramente não a única, são as castas nacionais, a insistência portuguesa na utilização e manutenção das variedades autóctones, castas originais que não existem em nenhum outro país.

Não se trata apenas da questão de utilizarmos preferencialmente as variedades lusas mas também da quantidade e validade qualitativa das castas oferecidas por uma natureza que foi especialmente bondosa. Para além da felicidade e abundância proporcionada pela natureza, tivemos ainda a fortuna de conseguir conservar esse património de forma brilhante. Poderemos sempre argumentar se essa proeza foi alcançada por termos um objectivo idealizado e graças a um esforço metódico ou por um acaso da história, por conservadorismo, por isolamento geográfico e histórico, por falta de investimento ou por outra contingência qualquer.

A verdade é que dispomos hoje, tal como no passado, de um argumento único e que poucos países produtores de vinho desfrutam: a capacidade de fazer vinhos autênticos e diferentes do resto do mundo, vinhos personalizados e originais que fogem ao padrão internacional que a maioria dos produtores de vinho dos restantes países, europeus e do novo mundo, seguem.

Claro que aquilo que é diferente pode ser sempre considerado simultaneamente como uma bênção ou como uma maldição. Se ser diferente permite, por um lado, uma individualidade que sai reforçada no meio de um mar de vinhos de perfil mais ou menos igualitário, ser diferente significa igualmente ser estranho, novo e desconhecido. Obriga a gastar recursos para explicar e dar a conhecer os vinhos, impõe uma mudança de gostos, impele à educação e a uma mudança de preceitos e preconceitos. E todos sabemos que a mudança, independentemente da sociedade em causa, é sempre difícil, custosa e cara.

Para além dessa diferença fundamental, que presume a utilização de variedades que mais nenhum país ou região usam e que ninguém conhece ou sabe pronunciar, os portugueses preferem ainda fazer vinhos de lote, com diversas castas misturadas, que tornam essa aprendizagem mais exigente, adicionando dificuldade ao momento de compreensão das qualidades e particularidades individuais de cada variedade. Não é um defeito nem uma virtude, é apenas o seguimento da tradição portuguesa que tanto nos orgulha e que demonstrou ao longo de séculos ser suficientemente proveitosa para ser preservada.

Como se estas diferenças não fossem suficientemente extremas e exóticas por si, só o isolamento português determinou ainda a manutenção de práticas que para os olhos do mundo são consideradas excêntricas e surpreendentes. Costumes que para nós são rotineiros, como pisar as uvas com os pés ou fermentar vinhos em lagares, são princípios estranhos e desconhecidos para a maioria do mundo produtor de vinho. Mesmo a ideia de fermentar vinhos em ânforas de barro, tradição mantida nas terras alentejanas, revela uma forma diferente de utilizar estas ânforas. Para além do Alentejo, só uma outra região, a Geórgia, manteve esta prática ao longo dos séculos, com a diferença de os georgianos, e todos aqueles que têm vindo a recuperar esta tradição tão antiga, enterrarem as ânforas no chão, enquanto no Alentejo elas sempre foram mantidas à superfície.

Num país com tantas e tão antigas tradições só uma prática se mantém tabu, embora a mesma se ajuste como um dos pilares essenciais para a fama e proveito dos vinhos fortificados nacionais, a ideia de misturar colheitas, o conceito de juntar vinhos de idades e colheitas distintas numa só garrafa. Para o vinho do Porto, vinho da Madeira ou moscatel de Setúbal, a arquitectura é mais que evidente e os vinhos são não só consequentes como fundamentais para a identidade. São aquilo que se designa como vinhos com indicação de idade, vinhos de 10, 20, 30 ou mais de 40 anos, no caso do vinho do Porto e moscatel de Setúbal, e três, cinco, dez, 15, 20, 30 ou 40 anos no caso do vinho da Madeira.

Juntar colheitas distintas sempre fez parte da longa tradição portuguesa. O princípio inerente é exactamente o mesmo que sustenta a tese da mistura de castas, da arte do lote que tanto defendemos e que usamos como elemento identificador da nossa identidade e como forma de promoção internacional dos vinhos portugueses. O lote de colheitas permite a assimilação de diferentes variáveis e a consequente introdução de complexidade e riqueza inigualáveis. Nos vinhos mais simples permite ainda a atenuação de colheitas menos bondosas valorizadas pelas colheitas de maior riqueza.

E no entanto são raros os produtores a sentir-se tentados por embarcar nesta experiência. A pressão do mercado, que valoriza uma data de colheita, a provável falta de rotação na prateleira, a dificuldade em explicar mais um conceito, a falta de conhecimento das vantagens, podem ajudar a explicar que tão poucos produtores demonstrem interesse na prossecução da sua realização. Mas não há nenhuma razão para que esta prática tão antiga não volte a ser reabilitada, melhorando alguns vinhos mais simples e engrandecendo os melhores vinhos sob os mesmos princípios com que defendemos a arte do lote.

--%>