Fugas - Vinhos

Rui Soares

Grand Noir e os clássicos do Alentejo

Por Rui Falcão

O preconceito, seja ele qual for, tolda o discernimento, ensombra o juízo e o critério. Por mais que tentemos combater e afastar o preconceito, a verdade é que ele abarca a sociedade de uma forma mais ou menos transversal, sendo parte intrínseca da condição humana.

O preconceito abunda, alargando-se a todos os campos do saber, seja ele racional ou científico. É, porém, no capítulo do ócio e do prazer que o preconceito se propaga e perpetua de forma mais viçosa, alimentando-se do conceito tão em voga que se chama “paixão”. Nenhuma faceta da sociedade é tão permeável ao preconceito como as áreas de lazer, espaços que vivem torneados pela crítica e que ocupam circunstâncias onde conceitos como a ciência ou a exactidão são encaradas com bastante relatividade.

A literatura, música, cinefilia, desportos, gastronomia e vinho são terreiros onde a crítica e a subjectividade jogam um papel decisivo na formação de opinião, terrenos onde o preconceito mais se desenvolveu e onde ganha maior instância. Um desses muitos preconceitos que circulam pelo ar e que moldam a perspectiva colectiva garante que os vinhos alentejanos são fáceis, são por regra vinhos quentes e simples, vinhos de taninos suaves, sedosos e de vida curta, vinhos que deverão ser bebidos enquanto jovens e no mais curto espaço de tempo possível, beneficiando deles enquanto adolescentes e exuberantes.

Uma imensa maioria considera os vinhos alentejanos presos a estereótipos do passado ou a circunstâncias especiais que raramente têm fundamento, colando-lhes uma imagem de simplicidade e veludo que raramente é ractificada pela realidade. Quando olhamos para a vasta maioria dos vinhos alentejanos mais ambiciosos iremos encontrar vinhos sólidos e fechados, por vezes ríspidos e severos, vigorosos e com um enorme potencial de envelhecimento em garrafa. Mas uma das maiores desfeitas para com os vinhos alentejanos são as dúvidas constantes sobre a sua longevidade, sobre o seu potencial de envelhecimento, sobre a capacidade de poderem viver longos anos em garrafa.

Claro que, tal como nas demais regiões do mundo, existem vinhos de guarda, tal como existem vinhos pensados para serem bebidos cedo. Tal como nas restantes denominações de origem, a maioria dos vinhos é projectada para ser bebida cedo, durante a fase de maior eloquência da juventude. Mas, tal como nas regiões de maior prestígio de Portugal e do mundo, a pequena fracção de vinhos que é desenhada e objectivamente pensada para ser guardada é capaz de se eternizar em garrafa de forma tão ou mais convincente que no resto do território nacional.

Para confirmar esta teoria tive oportunidade de apresentar recentemente, durante a edição da Essência do Vinho do corrente ano, uma prova de vinhos alentejanos clássicos que contavam já com alguma idade em garrafa, prova que inclui antigas glórias e estrelas contemporâneas como os Esporão Garrafeira 1997, Cartuxa Reserva 1997, Paço dos Infantes 1984, d’Avillez Garrafeira 1995, Tapada do Chaves Frangoneiro 1986, Mouchão 1963 e Rosado Fernandes 1945. Uma prova ecléctica que juntou produtores já desaparecidos, produtores renascidos das cinzas a par de nomes que ainda hoje se inscrevem entre os nomes mais sonantes e respeitados de Portugal.

Curiosamente, e com uma única excepção, os vinhos mantinham-se inteiramente fiéis às castas regionais, entendendo o Alicante Bouschet como casta regional, às variedades alentejanas e portuguesas que dominavam a paisagem antes da introdução mais ou menos sistemática das variedades forâneas mais populares da actualidade, como os ubíquos Syrah, Cabernet Sauvignon, Petit Verdot e demais companheiros. Aragonez, Trincadeira, Castelão e Alicante Bouschet representavam os quatro nomes mais presentes nos contra-rótulos, para além de um par de castas hoje quase desprezadas como o Moreto, Tinta Caiada ou Grand Noir.

Precisamente esta última casta, o Grand Noir, representa muito provavelmente um dos casos simultaneamente mais estranhos e paradigmáticos do Alentejo. Enquanto a variedade Alicante Bouschet foi florescendo, acabando por se transformar numa das imagens de marca da região, o Grand Noir seguiu o caminho oposto, caindo num esquecimento colectivo sem que se entendam muito bem as razões para tais vicissitudes. Quanto mais não seja porque as duas castas em causa são tão próximas na génese e na história que as podemos considerar primas direitas.

Tal como o Alicante Bouschet, o Grand Noir é uma variedade criada pelo homem, uma casta que resulta do cruzamento forçado de duas outras castas. E, tal como no Alicante Bouschet, o pai do cruzamento é a mesma pessoa, o francês Henri Bouschet. Nas quatro variedades que compõem o Grand Noir e o Alicante Bouschet a dosagem só difere numa das castas empregadas, convertendo as duas castas em versões muito próximas e semelhantes em quase tudo… incluindo a capacidade corante. As castas são tão próximas que uma das sinonímias alentejanas do Grand Noir é precisamente Grand Bouschet.

E é em Portalegre, mas também em Reguengos, que o desaparecimento gradual do Grand Noir tanto incomoda e tanto dá que pensar. São conhecidas as dificuldades de adaptação do Alicante Bouschet ao clima húmido e difícil da serra de São Mamede, a identidade da sub-região de Portalegre. Mas são também conhecidas as facilidades e afinidades do Grand Noir com a sub-região de Portalegre, tal como demonstram de forma tão efusiva os saudosos d’Avillez Garrafeira, vinhos imensos e comoventes, vinhos frescos e irrequietos que o tempo não conseguiu beliscar e que se mantêm vivos e pujantes como poucos em Portugal.

Como é possível esquecer e desperdiçar uma casta como o Grand Noir, especialmente em Portalegre, quando basta olhar para os vinhos e as glórias do passado para colher ensinamentos para o futuro?

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