Fugas - Vinhos

Dirceu Vianna Júnior, fotografado no Hotel The Yeatman, no Porto

Dirceu Vianna Júnior, fotografado no Hotel The Yeatman, no Porto NFactos/Ricardo Castelo

“Podem degustar-se 50 vinhos por dia mas há vinhos que nunca mais se esquecem”

Por Simone Duarte

Dirceu Vianna Júnior é o único brasileiro master of wine, um selecto grupo de pouco mais de 300 pessoas em todo o mundo. Já degustou mais de 50 mil vinhos. Fará duas provas especiais no Vinhos de Portugal no Rio, de 22 a 24 de Maio, no Rio de Janeiro, mas antes entrevistámo-lo no Porto.

Dirceu Vianna Júnior estudava Engenharia Florestal e Direito em Curitiba quando aceitou o convite de um amigo para visitar uma prima em Londres. Tinha 20 anos. Chegou de bermudas e mochila às costas, nunca mais voltou. Em 2008, recebeu o título mais cobiçado no universo do vinho: master of wine. É o único brasileiro, ou melhor, o único representante de língua portuguesa, a pertencer ao selecto grupo de pouco mais de 300 pessoas em todo o mundo. Já degustou mais de 50 mil vinhos. Fará duas provas especiais no Vinhos de Portugal no Rio. Passámos uma manhã com Dirceu Vianna Júnior no Porto. Tinha acabado de chegar de Oxford e Manchester e estava de partida para o Gana, em África. “O que eu mais gosto no meu trabalho é a liberdade, nenhum dia é igual ao outro”.

Como é que explica a um leigo o que faz? O que é, afinal, um master of wine?

Há os enólogos, os viticultores, os jornalistas, o pessoal do marketing. Um master of wine tem que saber de tudo, do início ao fim. O trabalho do viticultor que trabalha com a terra, o solo, o subsolo... Tem que saber degustar, tem que fazer vinho. Fui à África do Sul e lá trabalhei com um dos grandes enólogos do país. Ou seja, tem de estudar tudo, por isso leva muito tempo e é tão difícil. Eu levei mais de oito anos para conseguir.

Mas reprovou duas vezes?

Sim, sim. Pouquíssimas pessoas passam à primeira vez. Tem que se perceber dos vinhos da Hungria, da Áustria, Portugal, Itália, Alemanha, Espanha, de todos os lugares do mundo, dos diferentes estilos, de como são feitos, o clima, o solo, a legislação…Tem que se ser humilde o suficiente para saber que se vai ser reprovado. E olhe que no Brasil sempre estudei, sempre estive entre os primeiros da turma. Passei em todos os exames que fiz. É duro ser reprovado. Tanto trabalho, tanta energia, estudar de madrugada, de dia, de noite, fim-de-semana. Até hoje tenho pesadelos com o processo todo. Acordo a meio da noite a pensar que estou a fazer a prova outra vez.

Saiu do Brasil muito jovem. Em que momento em Londres decidiu que queria fazer parte do clube dos maiores especialistas em vinhos?

Sempre fui competitivo. Qualquer que fosse o meu trabalho tentava ser o melhor. Quando era jovem queria ser jogador de futebol… não ia parar enquanto não estivesse na selecção brasileira. Quando chegou o momento em que vi que o meu trabalho ia ser com vinho, que eu gostava não só da bebida mas da cultura, da história, de tudo o que está em redor do vinho e das pessoas, que são o melhor e o mais importante. Os produtores, os enólogos, os donos são pessoas em geral apaixonadas e generosas com o tempo. Quando percebi que o que eu queria era mesmo trabalhar com vinho, perguntei o que era o topo da indústria: master of wine.

Mas quando saiu do Brasil, aos 20 anos, não havia qualquer ligação da sua família ao vinho?

Não. O meu pai bebia vinho mas nada de especial. Eu venho de uma família de classe média do interior do Paraná, uma cidade chamada Marechal Cândido Rondon. Quando tinha 17 anos fui estudar Inglês nos Estados Unidos. Depois voltei, passei em vários vestibulares e escolhi Engenharia Florestal e Direito. Fazia um curso durante o dia e outro durante a noite. Mas no fundo não sabia o que queria. Então um amigo que dividia o apartamento comigo convidou-me para ir a Londres visitar a prima dele. Tinha 20 anos e fui. Imagine chegar no Verão a Inglaterra. Foi maravilhoso. Era só sair, jogar futebol no parque, fazer bagunça. Passou a primeira semana, a segunda semana, a terceira e aí ou começávamos a trabalhar para continuar em Londres ou voltávamos para o Brasil.

E foi quando começou a trabalhar como garçon num restaurante?

Não. Como assistente de garçon, porque eu falava [inglês]. O meu amigo foi trabalhar noutro restaurante na cozinha porque não sabia falar inglês. Depois de uma ou duas semanas, fui promovido para garçon e uns três meses depois o gerente foi abrir um restaurante e levou-me para ser o gerente.

E começa aí o seu interesse por vinhos?

Eu não sabia nada sobre vinhos e precisava de fazer a carta, como é que ia fazer? Fui estudar hotelaria no Westminster College. Eram vários cursos, um deles de vinhos. Fui especializar-me e formei-me na Wine Spirit Education Trust, que é uma das melhores escolas de vinho do mundo.

E hoje é director de uma das grandes importadoras de bebidas de Inglaterra.

Tenho que escolher os vinhos que vamos comprar em todo o mundo. Temos cerca de 2000 na carta, desde vinhos do dia-a-dia até vinhos que custam 10, 15 ou 20 mil libras a caixa, ou seja, 1500, 2000 libras por garrafa.

Mas desde que detém o título de master of wine não pára.

É verdade. Quando passei, em 2008, depois de estudar 12, 13 horas por dia durante anos, achei que ia ter mais tempo para ficar com a minha filha, dedicar-me à família, aos amigos, ia ter uma vida mais tranquila, mas piorou (risos). Muitas pessoas ajudaram-me a chegar onde cheguei. Deram-me o tempo delas e eu acho que tenho que dar o meu tempo. Mas encontrar o equilíbrio é difícil, nem sempre consigo. Por outro lado, o que mais gosto do meu trabalho é a liberdade, não há um dia igual ao outro. Estive em Oxford na semana passada e em Manchester, estou aqui no Porto agora e amanhã vou para o Gana.

E quantos vinhos já degustou?

Deixe-me tentar calcular… Pode variar por dia, 50, 100, 150. Já provei até 300 num só dia. Mas eu diria que em média seriam 50 por dia. Então, já provei mais de 50 mil, muito mais de 50 mil vinhos.

Mas há vinhos que ficam.

Sim, claro. Degustam-se 50 vinhos por dia mas há vinhos que nunca mais se esquecem. No ano passado, em São Paulo, bebi um vinho da Madeira de 1780 [H.M.Borges], o mais velho que já experimentei. Eu fiquei… a qualidade era incomum! Estava fresco como se fosse um vinho aberto ontem… (Faz um longo silêncio) Pensar em quantas mãos manusearam este vinho, de 234 anos, os antepassados… Há um sentimento de respeito por quem fez, quem cuidou de um vinho que depois de 234 anos está incomum. É muito forte.

Mas estava-me a contar que não bebe todos os dias…

Não. Tento me organizar para passar a semana sem beber. Degustar todos os vinhos às sextas-feiras e beber com a família e com os amigos nos fins -de-semana.

Mas não dá para escapar à curiosidade das pessoas quando percebem que é um especialista em vinhos...

A única rotina que tenho é fazer exercício físico. Acordo muito cedo e passo uma hora, uma hora e meia no ginásio. Em qualquer lugar do mundo. E, claro, quando estou em Londres, se depois do exercício vou para a sauna, começa sempre a conversa “O que é que você faz?” Claro que quando digo que trabalho com vinho, a conversa começa a girar em torno do vinho. Mas é natural, a maioria das pessoas bebe e gosta de compartilhar as histórias, os gostos, as experiências.

Você colecciona histórias , como a do padre em Copacabana...

Sim, já estive uma ou duas vezes na missa de uma igreja em Copacabana. Da última vez, o padre pediu que quem fosse novato ali se apresentasse. Como eu não disse nada, ele veio falar comigo. Tinha 80 anos e quando descobriu que eu trabalhava com vinhos, começou a falar-me do que gostava de beber e bebia bons vinhos, levou-me para uma longa conversa na sacristia. Foi muito simpático.

E o que os vinhos portugueses têm que os outros não têm?

Se fosse para responder sucintamente com uma palavra, eu diria diversidade. A diversidade num território tão pequeno. Além de ter as castas que outros países têm (Cabernet, Chardonnay, Shiraz) tem Encruzado, Arinto, Touriga Franca que outros países não têm.

E tem mais de 400 castas (uvas).

Sim, mas vários países têm essa quantidade, mas não num espaço tão pequeno. E não com a personalidade tão diversa. Vai, por exemplo, a Itália e os vinhos brancos são mais neutros do que o Encruzado, o Arinto, o Alvarinho… Isso explica-se pelas influências do solo, do clima e da própria casta (uvas que têm aspectos diferentes em relação à textura, acidez, ao perfil da fruta).

E como avalia a relação que o brasileiro tem com os vinhos portugueses?

Acho que antes de falar de vinhos tem que se falar da relação dos países Portugal e Brasil. Há uma afinidade histórica. O brasileiro é muito patriota quando fala de futebol ou Fórmula 1 mas na hora de consumir adora o que é estrangeiro.

Mas aí os vinhos argentinos e chilenos têm mais vantagem?

Os vinhos do Chile e da Argentina têm vantagem porque o Mercosul detém preços mais acessíveis. Mas o brasileiro tem muita afinidade com os vinhos de Portugal, Itália, França. Há um outro aspecto. A compra do vinho é uma compra de alto risco se não se conhecer. O Chile, por exemplo, tem várias marcas fortes já conhecidas, como o Concho Y Toro, então o consumidor já tem esta relação. Portugal tem tantos pequenos produtores que os brasileiros não conhecem e é por isso que eventos como este (Vinhos de Portugal no Rio) são importantes. O consumidor tem a hipótese de provar no seu copo o vinho, dizer “gostei” e da próxima vez que for comprar, além da afinidade, vai saber que não é um risco porque ele já provou o vinho de tal pessoa que ele até conheceu.

É diferente fazer uma prova no Brasil ou noutro lugar do mundo?

Do ponto de vista da satisfação é a mesma coisa para mim. Em Oxford, na semana passada, fiz provas para o público em geral, em Manchester foi para jornalistas, no Gana vai ser para 200 funcionários de uma empresa, na Argentina já fiz provas para 400 produtores de vinho. Os níveis de conhecimento de quem assiste são diferentes mas a minha satisfação de compartilhar o conhecimento que tenho é a mesma.

Muda a reacção do público?

Sim, fazer uma prova numa cidade linda como o Rio de Janeiro - aliás um dos itens da minha to do list é morar no Rio pelo menos por um ano - e falar de uma bebida que eu adoro é um privilégio. O público é caloroso, aplaude, quer tirar fotos comigo depois. Em Oxford ninguém vem pedir para tirar fotos no fim (risos). Pensando naquele jovem que chegou de mochila às costas em Heathrow até que não estou nada mal, não acha?

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