Fugas - Vinhos

Miguel Manso

Vinhos para o idílio

Por Pedro Garcias

Quem gosta de vinhos não consegue imaginar-se no paraíso só a beber água cristalina. Um bom vinho pode fazer de qualquer viagem uma experiência inesquecível. Mas melhor ainda é poder desfrutar de grandes vinhos em destinos de sonho.

O paraíso pode estar em qualquer lado, porque somos nós que o “criamos”. Mas na ideia original o paraíso é associado a uma ilha deserta coberta de vegetação luxuriante e a salvo de tudo, até do Dilúvio. 

A dimensão mágica dos espaços insulares, enquanto lugares isolados do mundo, imaculados e belos, alimentou a mitologia clássica, que criou um universo povoado de deuses e criaturas fantásticas cuja “vivência” esteve de algum modo ligado a ilhas. Foi ao largo de Capri, por exemplo, que Ulisses teve de amarrar-se ao mastro do navio para resistir aos cantos das sereias que vinham da ilha. Camões também idealizou uma ilha povoada de ninfas para acolher os navegadores no seu regresso vitorioso da Índia — a ilha “namorada”. E Thomas More, quando teorizou sobre o governo ideal, capaz de assegurar a felicidade de todos, pensou numa ilha, chamada Utopia. 

Apesar de o avião e da Internet estarem a reduzir a insularidade, as ilhas continuam a ser os espaços preferidos para projectarmos as nossas utopias e os nossos desejos de felicidade. Por sorte, muitas estão bem perto de nós e ainda preservam uma certa beleza primordial. Cada uma à sua maneira, as ilhas da ria Formosa e os arquipélagos dos Açores e da Madeira são os nossos paraísos.

E se não fosse suficiente a beleza de todas elas, algumas ainda produzem vinho — e não é possível pensar em paraíso sem vinho, dizemos nós. Por exemplo, nos Açores, as vinhas de lava do Pico e da Terceira dão origem a vinhos brancos inesquecíveis, pela sua frescura e salinidade. E da ilha da Madeira, mais humanizada mas também com grande carga onírica, saem alguns dos melhores vinhos fortificados do mundo, vinhos quase eternos que nasceram com a odisseia das Descobertas. A partir de 1600, o vinho Madeira começou a ser exportado em força para as Índias. As pipas de vinho seguiam nos porões dos navios, que atingiam temperaturas muito elevadas junto aos trópicos. Algum desse vinho acabava por regressar à Europa e, para surpresa geral, verificou-se que o calor acelerava a evolução do vinho e tornava-o ainda melhor A descoberta levou alguns produtores e comerciantes a enviar tonéis de vinho para longas viagens marítimas só com o objectivo de o valorizar. Foi assim que nasceu o “Vinho da Roda” ou “Vinho Torna Viagem”.

Viajar pelas ilhas do vinho podia levar-nos muito para além da Madeira e dos Açores. Na verdade, podíamos até dar a volta ao mundo e chegar às antípodas, até à Nova Zelândia e à Austrália. Mas, se não estiver para tanto, pode sempre pensar na Sicília (Itália) e nos seus capitosos vinhos doces, brancos secos e tintos de Nero d’Avola; em Lanzarote (Espanha) e nos seus brancos “lunares”; ou em várias ilhas gregas cujo arcaísmo e tradição permitiram conservar um infindável número de castas próprias que dão hoje origem a vinhos singulares. Ou então pode escolher uma outra ilha/paraíso qualquer e levar o seu vinho preferido para beber lá. Foi esse o desafio que lançámos a quatro personalidades do sector: que nos dissessem que vinho levariam para o seu idílio. Confira aqui as escolhas de cada uma. O que nós escolheríamos? Um Porto Colheita 1964 da Quinta do Noval ou um Madeira Sercial, o 1811 da Blandy’s, por exemplo, para beber até às lágrimas num dos recantos da ilha do Pico.

Quatro escolhas

João Paulo Martins, crítico de vinhos

“O vinho e a ilha deserta. Já várias vezes pensei nisto e nem sempre pelas melhores razões. É que a tal ilha deserta requer uma arte de desenrascanço, desempenho para o qual não me sinto totalmente habilitado. Se calhar, nem fogo sem fósforos consigo fazer. Ora, numa ilha deserta, a arte da sobrevivência determina a fronteira entre a vida e a morte e, apesar das leituras do Robinson Crusoe, Robinson Suíço, Sexta Feira ou Limbos do Pacífico e muitos episódios do McGyver vistos e devorados, parece-me que não iria fazer grande figura. Para esquecer, iria beber a garrafinha que tinha levado. O quê? Para mim, claro como água, um Madeira Blandy’s Boal 1920, já de si salino e iodado, a condizer com a paisagem. E a permitir, por outro lado, o consumo durante o tempo que seria suposto ficar na ilha. Só regressando para contar é que a tal ilha tem graça. Ida sem retorno, não tou nem aí…”

António Braga, enólogo da Sogrape no Douro

“O paraíso, qual paraíso? Em casa com a família? Numa vinha centenária no Douro? Na sala de provas da Ferreira? Numa ilha do Pacífico? Há tantos paraísos e há tantos vinhos, pergunta difícil! Muito difícil! Nós, enólogos, tentamos fazer vinhos para o paraíso de quem os abre, para que, naquele momento mágico em que se abre uma garrafa, tudo à volta seja um bocadinho mais paradisíaco! Se eu pensar num paraíso mais estival, inclino-me sem dúvida para um branco com acidez nervosa ou um rosé de frescura arrebatadora, sempre vinhos de zonas frias, como a verdejante Alsácia, ou mesmo os nossos irreverentes Vinhos Verdes, como os bons Loureiros da Quinta do Ameal, companheiros inseparáveis das mesas com marisco e amigos. Também há o paraíso do crepitar das lareiras, e aí um tinto do Douro será sempre a minha primeira escolha, o incrível equilíbrio entre a maturação e a acidez! Entre o tanino e a amplitude! E aqui é impossível esquecer os Quinta da Leda. E o que dizer da firmeza rústica, cheia de classe, de um bom Barolo de Giuseppe Rinaldi?” 

Ricardo Diogo, produtor ?de vinhos Madeira (Barbeito)

A ilha do Porto Santo é o único sítio onde perco a noção do tempo. E passear naquela praia, especialmente de manhazinha, inspira-me. Desde sempre foi uma ilha especial para mim. Dou comigo a imaginar beber aquele vinho bem ao fim do dia no bar e esplanada da praia do Hotel do Porto Santo, para mim uma das mais belas esplanadas de praia de Portugal. Muito tranquila, com a vegetação à volta e apenas um pedaço de praia, o amarelo da areia e o azul do mar em fundo. ‘Aquele vinho’ era o Pai Abel Chumbado, um branco da Bairrada, cheia de mineralidade para refrescar as ideias. Naquele lugar, àquela hora, era o vinho perfeito. Se fosse para beber numa montanha, por exemplo, levava um Madeira”. 

Beatriz Machado, directora de vinhos do Hotel Yeatman

“Como fã incondicional dos vinhos portugueses, é-me difícil escolher apenas um. Então contorno o desafio, fecho os olhos e imagino-me em St. Barts, numa ilha com dezenas de praias de areia branca, águas cristalinas e uma paisagem verde e montanhosa pontuada por numerosas lagoas. O que estou a beber?! Um Alvarinho com personalidade, nariz complexo cheio de fruta, sem madeira, com estrutura e acidez e um fim de boca tão longo que dura até dar um mergulho e voltar ao meu livro!”

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