Fugas - Vinhos

Nelson Garrido

Concentrar é a receita

Por Rui Falcão

Quatro vinhos fortificados magníficos: Porto, Madeira, Moscatel de Setúbal e Carcavelos.

Portugal será muito provavelmente o país produtor de vinho de tradição mais rica no capítulo brilhante dos vinhos doces, vinhos fortificados que ganham profundidade, riqueza e a untuosidade típica dos vinhos visceralmente concentrados. Para além de uma ou outra curiosidade local que o tempo foi apagando, Portugal conseguiu dar relevo a quatro vinhos fortificados magníficos, quatro famílias que, apesar de beneficiaram de sortes diferentes, marcaram e marcam a hierarquia qualitativa dos vinhos nacionais. São eles o vinho do Porto, o vinho da Madeira, o Moscatel de Setúbal e o menos conhecido mas igualmente brilhante vinho de Carcavelos.

De tão habituados a este estilo, de tão familiarizados com os vinhos doces de alta voltagem, por vezes nem nos apercebemos da excentricidade do facto, da riqueza do património e da dificuldade na sua execução. Os vinhos doces e concentrados sempre fascinaram o homem, embora poucos o tenham conseguido elevar à condição de prestígio e monumentalidade a que os portugueses, com a ajuda dos ingleses no vinho do Porto e vinho da Madeira, conseguiram imprimir.

Mas não somos seguramente os únicos a ter sucumbido aos encantos dos vinhos meigos, melífluos e untuosos. Muitas outras regiões europeias descobriram formas únicas e alternativas para imaginar vinhos doces e opulentos, vinhos concentrados e opíparos que assentam arraiais na atracção do açúcar compensado por uma dose de frescura final. E a palavra de ordem para a maioria dos vinhos doces tradicionais europeus é a concentração, o santo graal da enologia que está na base da maioria dos vinhos doces históricos.

Os métodos de elaboração para a requerida concentração variam por toda a Europa e podem ser encarados como uma ode à imaginação humana, à capacidade intelectual e ao expediente dos pequenos artifícios empíricos aprendidos com o método de tentativa e erro para finalmente conseguir contornar as regras da natureza. Cada uma destas metodologias cunha um estilo próprio no vinho, diferenciando de feição radical cada um dos estilos de vinho produzidos.

Um desses processos é a contaminação pelo fungo Botrytis Cinerea, prática também conhecida como podridão nobre, fungo que perfura a pele das uvas deixando bagos de fisionomia pouco atraente, bagos enrugados, desidratados e cobertos de um pó fino revestido por centenas de pequenos pontos acastanhados de aspecto sórdido. Mas são esses mesmos fungos que, ao perfurar a pele do bago de uva, possibilitam que grande parte do líquido do bago se evapore e aumente de forma natural a concentração de açúcares e respectiva doçura, elevando deste modo a viscosidade e untuosidade natural do vinho.

Mas este é um processo que obriga a uma cooperação preciosa da natureza e que dificilmente é reproduzível fora da sua zona de conforto — as regiões francesas de Sauternes e de Quarts de Chaume, esta última no Loire, as regiões dos grandes vales alemães, sobretudo Mosel e Rheingau, as regiões austríacas próximas ao lago Neusiedl e a região húngara de Tokay. Os vinhos de gelo, os Eiswein na sua versão original em alemão ou Icewine, na versão em inglês pela qual são hoje mais populares, são outra das arquitecturas naturais de concentração que dependem da colaboração da natureza.

Chamam-se vinhos de gelo porque são executados com uvas congeladas na vinha, vindimadas muito tardiamente, algures entre o final de Dezembro e meados do mês de Janeiro. De um ponto de vista vitícola, o conceito é simultaneamente espantoso e quase profano. De um ponto de vista humano o conceito é épico… e penoso. A concentração de açúcares e densidade existe pela cristalização da água dentro do bago, já que as uvas dão entrada na adega ainda profundamente congeladas. Depois de prensadas suavemente, os cristais de água são separados do sumo, dando azo a um mosto impressionantemente denso e concentrado, rico e repleto de açúcar. Só o Canadá, a Alemanha e a Áustria dispõem de condições naturais para a elaboração deste estilo de vinhos.

Mas se estes dois métodos estão dependentes da bondade da natureza, existem outras práticas que dispensam os favores da natureza, dependendo exclusivamente do empenho do homem. A regulação da temperatura e os processos de secagem são as fórmulas mais tradicionais para aumentar a concentração de açúcares. Se nos climas mais frios os cachos de uva são abandonados na vinha para que a congelação se encarregue da concentração, nos climas mais quentes adopta-se um processo quase inverso, o procedimento de secagem das uvas depois de vindimadas.

Enquanto no Sul de França e na região de Jura os cachos de uvas são dispostos sobre uma camada de palha onde vão secar por um período de quase dois meses, dando origem aos famosos Vin de Paille, na Toscana, Itália, os cachos são pendurados pelo engaço em armazéns secos e bem ventilados durante um período que pode chegar aos três meses antes de serem prensados e dar origem ao famoso Vin Santo. Ainda em Itália, mas um pouco mais a norte da Toscana, em Valpolicella, o famoso Recioto dela Valpolicella é elaborado de forma relativamente semelhante, secando os cachos de uvas em tapetes de palha estendidos em caves durante um período que varia entre os três e os cinco meses.

Perto da fronteira nacional, na região de Jerez, Andaluzia, os cachos de uvas da casta Pedro Ximénez são estendidos nas areias para secarem ao sol por um ciclo de poucos dias, período suficiente para transformar as uvas em passa, ganhando uma concentração de açúcar tão extrema que transforma os vinhos PX em vinhos de uma concentração e intensidade tão absurda que quase têm de ser bebidos à colher.

Formas engenhosas de construir vinhos que a bondade da natureza e o engenho do homem conseguiram proporcionar aos nossos vinhos do Porto, Madeira, Moscatel de Setúbal e Carcavelos.

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