Fugas - Vinhos

Público

Champanhe... e vinho do Porto

Por Rui Falcão

Crise? Isso não afecta as vendas de champanhe, em alto crescimento.

Seria expectável que a crise financeira e económica que decidiu asfixiar grande parte do mundo ocidental teimando em manter-se viva e ameaçadora para as economias desenvolvidas e para muitas das economias emergentes, tivesse conseguido debilitar o negócio dos vinhos de Champagne, nomeadamente as marcas mais luxuosas, com os rótulos mais caros e espampanantes, aqueles que se situam já bem acima da barreira psicológica dos 150 euros.

Porém, e ao contrário do prenunciado, as vendas dos vinhos de Champagne cresceram a ritmos quase pornográficos, ao mesmo tempo que se multiplicavam os rótulos vendidos a preços que poderemos considerar quase obscenos, com cada vez mais edições limitadas e exclusivas a ultrapassar a marca quase indecorosa dos 3000 euros. Note-se que estamos a falar sempre de vinhos jovens, sem o peso, o custo e a provação de um período de guarda prolongado que possibilite justificar tamanho investimento.

Convém insistir que sempre que se fala de Champanhe falamos de um vinho com indicação de origem, um vinho produzido na região francesa de Champagne, o que traduz que o nome Champanhe não é um mero sinónimo para vinho espumante. Produzem-se vinhos espumantes em muitos países, alguns deles francamente bons, Portugal incluído, mas a esses não se pode aplicar o nome Champanhe. Goste-se ou não da realidade, a verdade é que o nome Champagne no rótulo representa de imediato um enorme valor acrescentado que é necessariamente reflectido no preço.

Os vinhos de Champagne representam o triunfo do homem naquela que é uma das piores localizações vitícolas do mundo, uma região desfavorecida e onde as uvas mal conseguem amadurecer. Mas é precisamente essa localização tão radicalmente a norte que representa a história de sucesso de Champagne ao permitir a frescura e acidez suficientes para a glória da segunda fermentação em garrafa. A maioria dos vinhos não têm indicação de idade, reflectindo lotes de vinhos de diferentes idades onde entram quase em exclusivo as castas Pinot Noir, Pinot Meunier e Chardonnay, vinhos que pretendem manter um discurso uniforme representativo do estilo de cada casa ao longo dos anos.

Apesar de o lote entre vinhos de diferentes idades suavizar os anos menos bondosos e homogeneizar os vinhos de cada produtor, mantendo assim a assinatura de cada casa, a maioria dos produtores assume o risco de apresentar vinhos datados e exclusivos nos anos considerados excepcionais, prática que na sua filosofia é muito semelhante às práticas do vinho do Porto, Madeira e Moscatel de Setúbal. Vinhos que são inevitavelmente muito caros e que cobram um valor acrescentado único que radica na sua exclusividade, prestígio e capacidade de encarnar o sentido de luxo num modelo a que nenhuma outra região consegue aspirar.

Mas para aqueles que sobrepõem qualidade e prazer à imagem, e para todos aqueles para quem o orçamento não é ilimitado, o verdadeiro excitamento advém dos champanhes dos pequenos produtores, a maior renovação das últimas décadas na região de Champagne. As uvas que alimentam as grandes casas de Champagne, nomes tão célebres como Moet & Chandon, Veuve Clicquot, Pol Roger, Bollinger, Perrier-Jouet, Ruinart, Taittinger e tantas outras, provêm de milhares de pequenos viticultores espalhados pela região.

Ao longo dos últimos anos, um número cada vez maior destes pequenos viticultores começaram a engarrafar os seus próprios vinhos, em lugar de se limitarem a vender uvas para os grandes nomes da região, iniciando uma revolução e uma nova dinâmica numa região que sempre se tinha caracterizado pela dependência e quase monopólio de um conjunto reduzido de casas com um enorme poder económico e mediático. Mais uma vez podemos estabelecer um pequeno paralelismo com o vinho do Porto que, aquando do momento de liberalização do estágio e engarrafamento no Douro, sem a imposição do envelhecimento em Gaia, permitiu a explosão de um número considerável de novos nomes no mercado dos Vintage e LBV.

A visita a estes pequenos produtores de Champagne é bem diferente da visita tradicional aos grandes produtores da região. A pequena dimensão significa prescindir de relações públicas, de salas de prova sofisticadas e de provas impecavelmente organizadas para serem substituídas pela conversa directa com o viticultor e enólogo, quase sempre a mesma pessoa, gente que põe a mão na massa e que trata dos vinhos directamente e sem intermediários.

O guru deste movimento é Anselme Selosse, o pequeno viticultor que virou produtor de culto em todo o mundo com uma ideia simples e tradicional mas radical para a região, o conceito que o vinho se faz na vinha. Poderá parecer um conceito banal e suficientemente trivial para nem sequer ser notícia, mas numa região de Champagne habituada a vender toneladas de uvas às grandes casas sem um verdadeiro controlo de qualidade o conceito foi revolucionário. Se o único objectivo da maioria dos viticultores era vender quilos de uvas indiferenciadas às grandes casas, que incentivos poderiam existir para uma viticultura cuidadosa, equilibrada e exigente?

E foi assim que nasceu em Champagne, logo na região mais conhecida do mundo, aquele que é o conceito essencial do vinho europeu, a noção de terroir, a consciência que o vinho nasce da conjugação do clima, topografia, solo, geologia e demais condicionantes naturais do vinho… a que há que somar o factor humano. Quem diria que este poderia ser um conceito revolucionário em França, o país que se orgulha de ter criado o conceito de terroir, e logo naquela que é muito provavelmente a região mais prestigiada do mundo.

Um mercado decisivo e uma mudança radical de preceitos que começa igualmente a ter paralelo nacional com alguns dos vinhos do Porto “independentes” que têm nascido ao longo das últimas décadas. Quem virá a ser o Anselme Selosse nacional?

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