O mapa mundi dos vinhos continua a mudar, cada vez mais rapidamente. Hoje, já faz pouco sentido falar do Novo Mundo, por oposição às produções europeias do Velho Mundo. Porque no ritmo da mudança, com as plantações de vitis vinífera a expandirem-se aceleradamente no sul de Inglaterra, em estados americanos como o Nebraska ou Virgínia, ou em países ainda mais setentrionais como o Canadá, as produções da Austrália ou da África do Sul merecem já ser vistas como “antigas”. E neste compasso de transformação empurrado por um negócio cujas exportações duplicaram em valor nos últimos 20 anos, não há apenas a ter em consideração o aparecimento de novos actores que importam castas europeias, contratam técnicos europeus e levam as suas marcas aos consumidores à boleia do reconhecimento dos estilos de Bordéus ou da Borgonha, ou às costas da fama da Chardonnay ou da Pinot Noir. Nos anos recentes, também velhas nações vitícolas como a Moldova, a Geórgia ou a região da Crimeia, recentemente anexada pela Rússia à Ucrânia, decidiram regressar ao jogo.
Um bom lugar para nos apercebermos do mapa das mudanças é uma feira mundial de vinhos como a que no princípio deste mês teve lugar em Hong Kong. Claro que quem passasse pelos seus intermináveis pavilhões haveria de dar conta que neste jogo em que o reconhecimento e o prestígio valem mais do que o risco e a incerteza, os franceses, italianos, espanhóis, alemães ou australianos ditam as regras do jogo. São eles quem ocupa mais espaço e suscita mais atenção. Os portugueses estavam em grande plano, principalmente porque a produção nacional funcionou este ano como a estrela do evento (45 produtores presentes). Mas entre o brilho dos grandes pavilhões, em balcões mais discretos e menos merecedores da atenção do público, era possível encontrar vinhos do Cazaquistão, da Roménia, do México ou, como não podia ser, da China.
O que dizer destes vinhos? Que, como em tudo, há alguns bons e outros fracotes. Depende. Podemos até encontrar alguns acima do bom, principalmente os provenientes de países com tradições milenares na viticultura mas que só agora estão a despertar para a globalização do vinho. O que é certo é que muitos se nos apresentam numa feição irrecusável: são diferentes. São feitos com castas diferentes, em solos e climas diferentes, com tecnologias por vezes originais. Mas, confessemos, que muitos outros, talvez até a maioria, não passam de cópias de originais europeus. Nestes casos, serão vinhos para competir pelo preço, nunca pelo prestígio e pela qualidade. Haverá decerto lugar para todos.
Roménia
Comecemos a viagem no interior do espaço europeu e euroasiático outrora controlado pela União Soviética. Na Roménia, por exemplo. Na região de Vrancea, na Moldávia romena, produzem-se brancos com a casta Feteascã Regalã que propiciam aromas algures entre o moscatel e o Gewurztraminer. O Stefan cel Mare, uma marca que se inspira na lenda de um rei (Estevão III) consegue ainda assim um balanço seco e alguma mineralidade. É um vinho interessante que, na Roménia, se pode comprar por 1.40 euros. Nada mau. Já um Chardonnay da região de Insuratei tem outros pergaminhos. Uma sensação cítrica e fresca muito agradável é talvez a sua principal arma. O potencial romeno, porém, não se fica apenas pelos brancos (ou pelos preços arrasadores com que está a exportar as suas produções). Os tintos feitos a partir das castas Feteascã Negra e Babeasca Negra são secos, mostram taninos com garra, volume e uma acidez muito interessante.
Crimeia
Rumemos agora ainda mais a Leste. Até à Crimeia. A Crimeia produz vinhos há séculos. Na era de Catarina, a Grande, na segunda metade do século XVIII, a península era a responsável pela produção dos vinhos da corte, geralmente fortificados e doces. Nesse tempo, alguns dos vinhos mais apreciados da Europa, como o Porto ou o Xerês, começaram a ser replicados nas suas adegas. Ainda hoje o são. A Massandra, uma empresa representada em Hong Kong por duas mulheres de estilo soviético e por uma intérprete que se esforçava a cada passo por quebrar a natural antipatia que exibiam, produz ainda hoje um Red Port que, apesar da sua boa acidez, é uma clamorosa desilusão pela sua falta de intensidade e balanço. O Alushta, um tinto feito em partes iguais com as castas Saperavi (voltaremos a falar dela) e Cabernet Sauvignon seleccionadas entre os 10 mil hectares de vinhas da companhia estatal, confirma a desilusão. Cru, excessivamente rústico, sem uma ponta de complexidade, é um vinho de outro tempo – como a empresa, aliás.
Mas não há que desistir da experiência na Crimeia. Nas colinas ocidentais da península, no vale de Alma, onde teve lugar uma das principais batalhas da Guerra da Crimeia, que entre 1853 e 1855 opõe turcos, franceses e alemães aos russos, nasceu já este século uma experiência que vale a pena conhecer. Ali, o regime de chuvas (450-600 milímetros por ano) é favorável, a brisa do mar Negro tempera o calor do Verão e só o Inverno dá problemas aos viticultores, principalmente quando o termómetro desce abaixo dos 20 graus negativos e obriga a proteger as plantas do gelo extremo. Não admira que nessas colinas a vinha seja uma história antiga. Que, no entanto, foi suspensa com a campanha anti álcool de 1985 e com a crise económica acentuada com o fim do império soviético. As vinhas foram então abandonadas e assim ficaram até 2005.
Nesse ano, o projecto empresarial Alma Valley apostou na ressurreição dos vinhedos da região. Especialistas suíços foram contratados para escolher castas e orientar as plantações, iniciadas em 2008, e que hoje abrangem 160 hectares. A opção variou entre castas francesas ou espanholas (a Tempranillo, que em Portugal se conhece como Tinta Roriz, ou, no Alentejo, Aragonez) e variedades locais, como a tinta Kefesia. Em 2013 construiu-se uma adega imponente e Thomas Doll, um enólogo alemão com vasta experiência no seu país natal, na Espanha e na Austrália, começou a fazer os primeiros vinhos. Ao contrário da Massandra, na Alma Valley tudo é profissional. Por isso os vinhos são promissores, apesar de o potencial de uma vinha tão jovem estar ainda por explorar.
Os tintos e brancos da Alma Valley conseguem um muito interessante balanço entre a natureza internacional das castas que lhes dão origem e a marca da região onde crescem. O que melhor marca o seu perfil é uma notável frescura. A mineralidade dos brancos é muito atraente e uma certa dimensão vegetal dos tintos torna-os muito aptos para acompanhar comidas fortes. O Merlot de 2013, que passou 12 meses em carvalho de Karabakh, é talvez o mais bem conseguido de todo o portefólio. Com um volume alcoólico prudente (13%), apresenta uma bela estrutura, volume, persistência e complexidade. Custa oito euros à saída da adega, o que não é mau para um tinto deste porte. Infelizmente (para Sergey Chigrin, o director comercial da empresa, e também para nós), o embargo decretado pela União Europeia aos produtos russos na sequência da invasão da Ucrânia, impedem a sua circulação entre nós.
Geórgia
Cruzando o Mar Negro em direcção a nascente, chega-se à Geórgia. Não é por falta de tradição que esta ex-república da URSS não tem um papel hegemónico no mundo dos vinhos. Na contabilidade dos próprios, a região faz vindimas há 8000 anos. Como se esta convicção não bastasse para convencer os mais cépticos, os georgianos dizem que a palavra que usam para designar as castas (“ghvino”) esteve na origem do termo que deu origem à palavra “vinho” nas diferentes famílias linguísticas da Europa. E como se mais este argumento não fosse suficiente, a Geórgia tem ainda a seu favor um impressionante património de castas: nada mais, nada menos do que 525. Ou seja, quase o dobro das existentes em Portugal, um país reputado pela sua extraordinária diversidade genética. As suas regiões estendem-se desde a orla do Mar Negro até à fronteira com o Azerbaijão. É neste extremo que se encontra Kakheti, famosa pelos seus Saperavi, uma casta tinta que funciona um pouco como a Touriga Nacional – um porta-estandarte dos vinhos georgianos.
A Khareba é uma empresa que dispõe de mais de mil hectares de vinhas espalhadas por diversas regiões. É, por isso, uma boa base para se partir à descoberta dos vinhos da Geórgia. Não há dúvida que os vinhos mais expressivos, marcantes e originais são os que são feitos com as castas Saperavi e Rkatsiteli, esta uma variedade branca. São vinhos directos, frugais, com uma boa secura, acidez e baixo volume de álcool. E todas essas dimensões se acentuam quando são vinificados nos ancestrais Qvevris, recipientes similares às talhas que se usam no Alentejo. Nestes casos, os vinhos ganham outra profundidade, adquirem por vezes notas balsâmicas e conquistam alguma complexidade. Mas, não é pelo estalo nos sentidos que vale a pena conhecer o vinho georgiano: pelo contrário é pela sua singular simplicidade e pela precisão dos seus contornos. Não são e talvez nunca sejam vinhos de classe mundial. Mas são ideais para dar algum descanso a palatos cansados de com excesso de fruta ou de álcool.
Cazaquistão
Para se chegar ao mundo reconstruído pela Arba Wine é preciso prosseguir a viagem ainda mais para Oriente, atravessar o mar Cáspio e chegar perto de Almaty, a grande cidade do Cazaquistão que foi capital do país até 1997 – ano em que uma cidade nova foi edificada em Astana, numa posição mais central deste enorme país. Aí, num vale circundado por montanhas onde a neve é persistente, o Assa, há muitos anos que a viticultura foi experimentada e desenvolvida. Mas, como aconteceu na Geórgia, as campanhas anti-álcool dos anos de 1980 levaram a cultura ao abandono. Só muito recentemente investidores privados decidiram recuperá-la. Como acontece tantas vezes nestes países, à custa de investimentos gigantescos. Para os dirigir, foram contratados vários consultores de viticultura de prestígio internacional, como o italiano Mario Fregoni, ou enólogos vindos de França ou da Alemanha.
Na extensa planície do vale de Assa ou nas colinas adjacentes onde a Arba tem as suas vinhas, foram plantadas as variedades internacionais mais conhecidas – Pinot Noir, Chardonnay, Gewurztraminer ou Syrah – juntamente com castas que conhecemos da Geórgia – a Saperavi ou a branca Rkatsiteli. O clima, ameno no Verão e duro no Inverno, e as características do solo (granítico) são excelentes para a viticultura. E, como não podia deixar de ser, os vinhos da Arba Wine, produzidos sob orientação de consultores internacionais, são a expressão desse potencial.
Não tanto os tintos, seja o Pinot Noir de 2013 ou o Saperavi de 2012, que, sendo vinhos muito interessantes (as notas de tabaco do Pinot e a fruta pujante do Saperavi), não reúnem potencial para fazer a diferença no exigente mercado mundial. O mesmo já não se pode dizer dos brancos, que, na generalidade, são vinhos cheios de carácter e de uma fineza encantadora. O Riesling de 2013 é um vinho vibrante, com excelente fruta e um final de boca apetrolado, como é timbre dos bons exemplares da casta. O Gewurztraminer, também de 2013, não obedece ao perfil convencional desta estirpe (simplificando, não tem o aroma a água de rosas), mas é um vinho elegante, muito mineral e fresco e com sugestões de fruta deliciosas. Finalmente, o Chardonnay é um vinho com excelente acidez e um balanço muito equilibrado. Melhor na boca do que no nariz é um belo vinho que, como os seus pares, começa a suscitar atenção internacional – os brancos da Arba foram premiados no concurso internacional da companhia aérea Cathay Pacific deste ano. Para reforçar o seu valor, note-se que todos apresentam um volume alcoólico inferior a 13%.
China
O vinho na China já não é uma questão do futuro: é o presente. Não que o gigante asiático seja depositário de uma grande tradição, ou dono de um património genético que remonta há séculos ou milénios. A força motriz do vinho chinês é o negócio. Uma força que no curto prazo de poucas décadas fez com que a China tenha plantado a maior área de vinha do mundo (770 000 hectares) e que se tenha tornado no sétimo maior produtor mundial, com 11.2 milhões de hectolitros por ano (em média, cerca do dobro da produção nacional).
A região chinesa mais conhecida situa-se no deserto de Ningxia, onde estão já plantados 32 mil hectares (uma área aproximada à do Douro actual), mas que em 2020 deverá crescer até aos 65 mil. Os problemas ambientais impostos à cultura pelo clima desértico são enormes – é necessário transportar água de longas distâncias para a irrigação e, no Inverno, as plantas têm de ser cobertas para evitar os danos do frio.
Um dos projectos mais emblemáticos da vinha e do vinho na China é partilhado por capitais locais e pelos franceses da Moet Hennessy, o Domaine Chandon. Da sua adega ultramoderna saem vinhos espumantes e tranquilos produzidos a partir de castas internacionais. Os resultados, porém, estão longe de ser entusiasmantes.
O Flowers Field of Rain de 2013 é um Riesling seco mas sem densidade nem alma. O Chardonnay ilude pelo seu belo aroma, mas na boca é ainda assim um vinho plano, sem rasgo nem carácter. E o Cabernet Sauvignon de 2012, que passou pela madeira, acaba por ser o único vinho provado capaz de augurar um futuro minimamente credível para a marca. Porque conserva os traços essenciais da casta, com taninos vegetais, aromas de pimentão e uma estrutura e acidez que lhe auguram algum potencial de envelhecimento.
Canadá
Atravessando o Oceano Pacífico e subindo pela costa da Califórnia até ao Canadá encontra-se o vale de Okanagen, em declives suaves acima do mar. O clima temperado ajuda a viticultura. A ciência contribui para que potenciais desvantagens naturais sejam anuladas. Aqui, a vinha é uma realidade nova. As que são exploradas pela empresa familiar de Murat Ozen nasceram há apenas 14 anos. A agricultura orgânica, a genética que dá origem a castas como a Sauvidal, uma mistura de Sauvignon e Vidal, e o experimentalismo que permite a criação de vinhos com forte concentração de fruta são a base do negócio e Murat Ozen, um canadiano bem disposto e ousado – até nas suas marcas, como a Forbiden Fruit (Fruto Proibido) -, sabe que é pela aposta nessas características que pode competir no difícil mercado mundial. O Forbiden Fruit orgânico de 2014, feito a partir de lotes de Sauvignon Blanc, leva esses conceitos ao extremo.
É um vinho gordo, com um teor de álcool razoável (14%) e uma expressão de fruta quase violenta – à primeira vista parece até um sumo fresco de maracujá. Bebe-se bem, tem atributos, mas promete ser cansativo, dada a sua concentração. Já o Sauvidal de 2014 é bem mais balanceado, mas não deixa de ser acima de tudo uma bomba aromática na qual transparecem notas de ananás. Na boca, o seu grau de doçura impressiona. Não é propriamente um primor de vinho para a refeição, mas não lhe faltam adeptos.
México
Finalmente, a viagem por estes novos actores do mundo do vinho acaba no México – a viagem poderia prolongar-se pelo Sul, passando pelo Brasil e descendo até o Uruguai onde, apesar de tudo, a vinha e o vinho são culturas bem mais enraizadas. No México, as primeiras experiências com a videira remontam a 1704, mas só depois de 1880 é que a cultura começa a merecer atenção dos poderes públicos. Sem grande continuidade, porém, já que o México só muito recentemente começou a seguir os passos firmes e bem-sucedidos dos vizinhos americanos mais a Norte.
Dos 4700 hectares de vinhas existentes no país, cerca de 80% situam-se na Baja Califórnia, principalmente ao longo da faixa costeira que se prolonga ao longo de 300 quilómetros da fronteira com os Estados Unidos para sul.
Ali, empresas como a Casa Malgoni começaram a produzir para abastecer o mercado interno e dedicam-se agora a intensificar as exportações. Camilo Magioni é o cérebro da operação. No vale de Guadalupe, onde a empresa tem a sua base, as plantações começaram há 20 anos e ainda não há conclusões definitivas sobre o que produzir. Nos seus campos experimentais, Camilo tem em crescimento dezenas de castas de todo o mundo. Não faltam lá as portuguesas Fernão Pires, Verdelho, Touriga Nacional, Periquita e Tinta Amarela. Em breve, promete Camilo, haverá conclusões sobre o potencial de cada uma.
Até lá, a Casa Magione apresenta uma série de vinhos tintos com um bom balanço e profundidade feitos a partir de castas internacionais (da Malbec à Petite Syrah, da Merlot à Nebbiolo). São vinhos no geral simples, bem feitos, com estrutura e fruta madura, que se provam com prazer. Mas o topo de gama do México é o Cavall 7, feito pelo enólogo francês Stéphane Derenoncourt. É um Cabernet Sauvignon magnífico, intenso, com notas dominantes de especiaria, chocolate e fruta madura acentuadas pela madeira. A edição de 2014 ainda está na sua infância, com a presença da barrica ainda muito ostensiva, mas com mais um par de anos de garrafa este vinho tornar-se-á ainda maior.
O problema, bom, há sempre um problema, é o preço. Cada garrafa deste vinho custa acima dos 200 euros. Dificilmente um vinho mexicano poderá captar a atenção internacional com estes valores. Mas, nestas coisas do vinho, como nas da moda, tudo é possível.