Fugas - Vinhos

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Os cavalos lusitanos, as castas francesas e 400 anos de uma história ribatejana

Por Alexandra Prado Coelho

Uma história particular dentro do mundo dos vinhos do Tejo vivida na Casa Cadaval – Herdade de Muge, há mais de quatro séculos na mesma família.

As éguas estão no campo à nossa esquerda mas, avisa David Ferreira, o enólogo da Casa Cadaval, são esquivas e afastam-se quando as pessoas se aproximam. O fotógrafo da Fugas pede para descer do jipe para as fotografar e, como que enfeitiçadas pela objectiva, elas começam a avançar calmamente na direcção dele.

Uma em particular coloca-se em posição estratégica para ser fotografada e, de cada vez que o fotógrafo tenta mudar de lugar para apanhar melhor as outras, que esperam pacientemente atrás, a primeira avança e coloca-se outra vez em frente da objectiva. No carro todos se riem e David Ferreira rende-se à evidência — talvez as éguas não sejam sociáveis, mas quando desconfiam que podem aparecer num jornal, ultrapassam facilmente as suas reservas.

Estamos mesmo à entrada da Herdade de Muge, propriedade da Casa Cadaval, situada na margem esquerda do rio Tejo, a 80 quilómetros para norte de Lisboa — 5400 hectares que se estendem à nossa frente, 42 deles de vinha (37 de castas tintas), cerca de 1700 de área agrícola, com hortícolas, arroz, tomate, cereais, e perto de 3500 ocupados por montado de sobro e floresta. Há ainda o gado bovino, com 800 animais de raça mertolenga, e a coudelaria, com cerca de 60 animais, entre garanhões, éguas reprodutoras e poldros, todos de raça lusitana.

É um mundo imenso, tanto em dimensão como em história. Atravessamos a parte industrial da propriedade, onde se vêem ainda as estruturas dos tempos em que o arroz era a principal cultura da herdade, aproveitando os terrenos alagados pelo Tejo. Mas depois, a partir das décadas de 60 e 70 do século XX, o vinho veio substituir o arroz e com uma particularidade que ainda hoje faz da Casa Cadaval uma história à parte no mundo vitivinícola nacional.

Para perceber essa particularidade, temos que fazer uma pausa no passeio para um breve resumo da história da família proprietária da herdade há mais de 400 anos. Para isso, precisamos de fazer uma dupla viagem, no tempo e no espaço, até Itália na primeira década do século XX.

Descendente de uma família aristocrata italiana, Olga Maria Nicolis di Robilant foi enfermeira durante a I Guerra Mundial, altura em que conheceu o português António Caetano Álvares Pereira de Melo, marquês honorário de Cadaval. O casamento realizou-se em Julho de 1926, em Veneza, e três anos depois o casal veio para Portugal.

Quando o marido morreu, dez anos mais tarde, em 1939, a marquesa Olga Cadaval — que deu nome ao centro cultural de Sintra — procurou colaboradores que a ajudassem a tratar da herdade e foi desta forma que chegou ao Ribatejo um técnico francês que foi um dos primeiros enólogos da Casa Cadaval. Foi também a marquesa que trouxe para Portugal a fábrica de arroz, que funcionou na propriedade até 1975.

Hoje quem está à frente da Casa Cadaval – Herdade de Muge é a sua neta Teresa Álvares Pereira de Schönborn e Wiesentheid (presidente do conselho de administração do qual fazem parte também os seus irmãos), filha de Graziela Álvares Pereira de Melo e do conde alemão Karl von Schönborn, viticultor na região do Reno.

As castas francesas Cabernet Sauvignon e Pinot Noir chegaram ao Ribatejo em meados do século passado, pela mão do conde, que as plantou, juntamente com a Trincadeira Preta, em parcelas separadas e identificadas, o que permitiu mais tarde fazer a vinificação separadamente.

Vinho, faisões e flamingos

O enólogo David Ferreira mostra-nos essas vinhas mais velhas da propriedade. “Estes solos arenosos desgastam mais as plantas” mas permitem também fazer vinhos mais concentrados, explica. “É raro no Ribatejo, nas areias, haver vinhas tão velhas.” Temos aqui, por exemplo, a Trincadeira, que vem dos anos 1950 e que “não precisa de rega porque era plantada manualmente e a grande profundidade, por isso chega à água natural do solo”. E sorrindo conclui: “Os antigos sabiam o que faziam.”

Foi por essa altura que “se formou aqui uma identidade”, mas eram ainda os tempos da venda de vinho a granel, porque só nos anos 1990 é que a herdade começa a engarrafar, surgindo então as marcas que ainda hoje são a imagem da casa como o Padre Pedro, que em 2007 foi considerado pelo The New York Times o melhor vinho do mundo abaixo dos dez dólares (Padre Pedro Tinto de 2002).

Inicialmente, todas as garrafas aqui produzidas eram exportadas para a Alemanha, até por causa das ligações da família a este país; hoje os maiores mercados são os Estados Unidos e a Ásia. A partir de 2000, já com o enólogo Rui Reguinga (com o qual David Ferreira começou a trabalhar), a área de vinha começou a ser gradualmente reconvertida, apesar de não aumentar em número de hectares.

Seguimos de jipe pela herdade fora enquanto David Ferreira, que hoje está a fazer de nosso guia, conta que é dentro da herdade que se encontram os concheiros de Muge, um importante sítio arqueológico mesolítico, que, segundo o enólogo, continua sempre a atrair muitos interessados.

Passamos por local de produção de faisões para caça (projecto de um dos membros da família), por eucaliptos (“que dão ao Cabernet Sauvignon um perfil muito particular”), vemos as garças ao pé dos puro-sangue lusitanos, e, por dificuldades técnicas, só não conseguimos chegar ao pé dos flamingos que, garantem-nos, também por aqui se passeiam.

Vemos ao longe a aldeia de Granho, que nasceu e cresceu no meio da herdade, composta sobretudo por pessoas que vieram de outras regiões para trabalhar nas terras da Casa Cadaval, e cujo território foi depois cedido à população. Aliás, a família orgulha-se de sempre ter mantido óptimas relações com os seus trabalhadores, o que terá explicado que na altura do 25 de Abril, e ao contrário do que aconteceu com muitas outras propriedades que foram ocupadas, esta casa agrícola manteve-se intacta nas mãos da família.

Terminada a volta de jipe, é hora do almoço e tempo de conhecer a família, na casa histórica que foi da rainha D. Leonor, entrou no dote de D. Nuno Álvares Pereira de Melo, primeiro duque de Cadaval, pelo seu casamento com Maria de Faro, filha dos condes de Odemira, e pertence aos Cadaval desde 1648. Já não é exactamente a mesma casa, porque o terramoto de 1755 deixou-a praticamente destruída, mas preserva muitas histórias desta região — incluindo uma biblioteca importantíssima que no passado foi estudada pelo padre Carlos da Silva Tarouca, que também vivia na casa.

Teresa de Schönborn não está hoje, por isso somos recebidos, com lareira acesa e o novo espumante da casa, o Tuísca (feito pela primeira vez este ano a partir da casta Pinot Noir), pela sua irmã, a condessa Maria Castell Ruedenhausen. É ela que nos mostra como da janela da sala de estar se vê a ponte romana no local onde passava a estrada antiga (a estrada actual divide a propriedade) e conta como a avó Olga e o padre Tarouca se interessavam também por arqueologia e daí os bustos romanos encontrados na região e que hoje enfeitam o pátio interior da casa.

Há quadros de cavalos nas paredes e cestas para os cães à entrada. Almoçamos na sala de jantar, sopa feita com alhos franceses produzidos na propriedade e carne com legumes, acompanhada pelos vinhos da Casa Cadaval, o Padre Pedro 2015, em estreia, e o Trincadeira Preta Vinhas Velhas. E, por fim, antes de partirmos, o Marquesa de Cadaval, o vinho mais trabalhado de toda a produção e que, na sua intensidade cromática e aromática, é uma poderosa homenagem a Olga Cadaval, a primeira de um conjunto de mulheres que pegou na herança da Casa Cadaval no Ribatejo e a trouxe até nós, fiel à sua história. 

Para visitar

Desde a década de 1990 que a Casa Cadaval apostou mais no turismo e hoje oferece um conjunto de actividades que vão do programa “Um Dia no Ribatejo” (com saída de barco para um passeio pelo Tejo, visita à adega e prova de vinhos, almoço na herdade e visita à propriedade em tractor ou jipe) a “Um Dia com o Cavalo Lusitano” (que inclui almoço feito pelas cozinheiras da herdade e baptismo equestre). Ou, noutros programas, uma “Demonstração Equestre”, um “Passeio da Tractor pela Herdade de Muge” (mínimo 20 pessoas), “Provas de Vinho” (mínimo quatro pessoas), participação nas vindimas e visita ao sítio arqueológico dos concheiros de Muge. Há ainda actividades de caça e pesca e observação de aves, podendo-se optar por uma combinação de vários dos programas disponíveis. E existe à entrada uma loja para venda dos vinhos da herdade.

Casa Cadaval
Rua Vasco da Gama
2125-317 Muge
Tel.: 243588040
geral@casacadaval.pt
www.casacadaval.pt

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