Fugas - Vinhos

Adriano Miranda

Caves São João, um clássico de Portugal

Por RuI Falcão

Foi e continua a ser uma sociedade familiar, agora que é a terceira geração a comandar a embarcação.

Apesar de algumas promessas de retorno ainda não concretizadas, não deverá ser fácil para a maioria dos produtores da região assumir o nome Bairrada no contra-rótulo dos vinhos produzidos na denominação. Apesar de a Bairrada começar a recuperar destaque na escolha dos enófilos mais diligentes, não deverá ser fácil para os produtores ostentar de forma clara o designativo de uma região que navega demasiado longe da linha de costa, uma denominação que por ora ainda continua apartada das atenções e das preferências imediatas de tantos consumidores nacionais.

Por muito que isso custe aos entusiastas da região, e são cada vez mais, mencionar e inscrever o nome Bairrada não representa neste instante da história uma mais-valia comercial mas antes um fardo de lastro pesado de que não é fácil soltar-se nem tirar partido. O nome Bairrada por ora ainda não ajuda a vender vinho junto do grande público, que continua a olhar para a região com os mesmos sintomas de desconfiança que sentiu num passado recente.

A Bairrada continua a ser um substantivo áspero e de difícil superação e sujeição. Uma afirmação que é vertida com redobrada amargura e com a segurança de quem sabe que a Bairrada poderia e deveria dar corpo a alguns dos melhores vinhos nacionais. A Bairrada é uma região única que pode afirmar o seu potencial e valor de forma equitativa entre vinhos brancos e tintos. Sim, é verdade que existe uma mão cheia de vinhos bairradinos que conseguiram dar o salto da fama e do prestígio impondo-se de forma clara no grande imaginário colectivo. Mas infelizmente estes continuam a ser poucos, muito poucos, sustentando-se muito mais pelo nome dos produtores que pelo nome ou prestígio da região.

As causas são diversas, volúveis e supinamente complexas de enumerar, embora o factor humano se apresente como um dos motes fundamentais para o desequilíbrio e para as grandes fricções que afligem a região. Muito mais que as adversidades intrínsecas a um clima marcadamente atlântico e consequentemente instável, muito mais que as dificuldades em dominar uma casta tão irrequieta e aneira como a Baga, são os actores locais que dificultam o renovar da região. Basta olhar para as dificuldades imensas em definir um molde para a região, condição visível na coexistência paralela de duas certificações, Bairrada e Bairrada Clássica. Basta olhar para os percalços da indefinição entre castas internacionais e castas regionais, para as vantagens e inconvenientes do escoamento de vinhos menores através do canal fácil do leitão. A Bairrada sofre com algumas das guerras civis que lavram e lavraram a região opondo pessoas e conceitos, filosofias e lógicas, criando animosidades e algumas antipatias pessoais.

Mas, apesar de não ser uma região fácil, a Bairrada é capaz de proporcionar alguns dos vinhos nacionais mais extraordinários. Apesar da juventude da região como denominação de origem faz-se vinho há muitos séculos na Bairrada, com frequência até um passado relativamente recente em partilha directa com a outra grande região das Beiras, o Dão. Foi precisamente assente nesses princípios que as Caves São João, nascidas Irmãos Unidos, ofereceram tantos vinhos ao mundo.

Foi e continua a ser uma sociedade familiar, agora que é a terceira geração a comandar a embarcação. Como todas as sociedades familiares, já teve altos e baixos, períodos de bonança logo seguidos por ciclos de alguma indefinição e abatimento. Se os anos sessenta e setenta do século passado testemunham o período áureo das caves São João, numa época em que rótulos como Frei João, Caves São João e Porta dos Cavaleiros eram nomes admirados, o fim dos anos oitenta e sobretudo a década de noventa e períodos subsequentes atestaram o período mais nebuloso da casa. Uma época de letargia e acomodamento, de declínio suave e esquecimento progressivo, de estacionamento e alguma prostração.

Numa época onde tanto se modificou e reformou na paisagem vinícola portuguesa, numa quadra de transformações radicais na vinhas e na enologia, as Caves São João mantiveram-se suspensas num limbo etéreo, perdendo imagem e entrando no esquecimento num momento em que os consumidores foram ofuscados e atraídos por argumentos mais bem talhados para o seu tempo. Aparentemente tudo estava perdido e as Caves São João pareciam estar no ocaso da vida, condenadas a um desgaste inexorável e a um entorpecimento progressivo.

A realidade, contudo, apresentou-se distinta das profecias que se anunciavam no horizonte. Depois de anos de contrariedades, as caves São João, agora com a terceira geração à cabeça e com a gestão profissional e diligente de Célia Alves, mostram uma abertura, confiança e disposição que há muito não se antevia. A filosofia mantém-se clássica, assente nos valores da tradição mas com o toque de modernidade e racionalidade que se impunha. O melhor exemplo, para além da renovação e rejuvenescimento evidente do estilo dos vinhos sem perder o estilo, assenta na comercialização dos velhos vinhos que repousam na cave principal das Caves São João. Poderá parecer uma demência quase surreal, mas as Caves São João mantêm bem guardadas nas profundezas da terra um espólio de quase milhão e meio de garrafas de colheitas antigas guardadas do vício do tempo nas caves frescas e escuras do edifício principal.

Milhões de garrafas de colheitas tão díspares como 1963 ou 1966 repousam nos labirintos subterrâneos da adega com stocks de dez mil e mais garrafas por colheita à espera de quem se interesse por vinhos velhos e queira passar pelas imediações. São raras as ocasiões para provar vinhos brancos com 45 anos de idade ou tintos com 50 anos de idade que se encontram em perfeito estado de saúde, vinhos de personalidade forte e elegância rara capazes de revelar toda a grandeza da Bairrada. Vinhos excepcionais que dignificam o nome da região.

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