Faz sentido que um júri que se prepara para fazer uma prova cega de vinhos coloque em cima da mesa muitas perguntas. O papel de alumínio que cobre as garrafas esconde segredos e experimentar um vinho sem rede é sempre um desafio que esconde perigos.
Ainda mais quando, deliberadamente, a prova de vinhos brancos que a FUGAS propôs este ano ao seu júri era ousada e cheia de riscos. Na mesa estavam vinhos que iam das vindimas de 2012 até à do ano passado. Havia vinhos com e sem estágio em barricas de madeira. Havia vinhos que fermentaram nas borras finas durante meses (o processo tecnicamente conhecido como bâttonage) e outros que foram de imediato filtrados e passaram para as cubas de fermentação. Havia vinhos do Norte e do Sul de Portugal, de vinhas junto às praias e provenientes das montanhas. Havia vinhos de uma só casta e vinhos de lote. Havia vinhos só com castas portuguesas, mas havia também um vinho só de uma casta de origem francesa.
A tarefa era dura, mas a ideia era que fosse dura. Afinal, o que estava em causa era o mesmo processo de escolha que tantas vezes deixa os apreciadores de vinho em dúvida sobre o que comprar.
Na edição do ano passado da prova de vinhos brancos, escrevemos que o júri tinha privilegiado a acidez em detrimento da fruta ao colocar no primeiro lugar um branco do Douro, feito com a casta moscatel – o Quinta do Vallado Prima 2014. Este ano, pode-se dizer que a escolha se dirigiu para um branco que, de alguma forma, é mais consensual: o Cortes de Cima de 2014, um vinho que apresenta um bom balanço entre a expressão da fruta, o volume de boca e a acidez. Luis Costa, um dos membros do júri, sublinhou-lhe a “classe”. Beatriz Machado descreveu-o como apresentando aromas cítricos e de fruta tropical, detectou-lhe alguma adstringência, uma boa acidez e uma boa estrutura.
Este vinho criado pelo enólogo Hamilton Reis na propriedade do dinamarquês Hans Jorgensen e da sua mulher, a americana Carrie Jorgensen, tem por base as castas Alvarinho, Sauvignon Blanc e Viognier e nasceu na mais nova fronteira aberta na região do Alentejo: a zona de Vila Nova de Milfontes, a curta distância do mar, o que ajuda a explicar a sua maior frescura.
Para quem se lembra do tempo em que os Cortes de Cima eram produzidos no interior do Alentejo, perto da Vidigueira, a vitória na prova foi uma surpresa. Há apenas quatro ou cinco anos, os vinhos desta marca eram no geral mais alcoólicos, mais pesados, sem a vivacidade das mais recentes edições. E a surpresa adensa-se quando na mesa estavam vinhos com uma estatura sujeita a outro reconhecimento na crítica e no mercado.
As provas cegas, com todos os defeitos e problemas que apresentam (o maior é o de descontextualizarem o vinho da sua história e de o resumirem a uma simples fonte de aromas e paladares), têm o mérito de nos colocar perante situações dessas. Situações surpreendentes e por vezes inimagináveis. Por isso são tão atraentes. E perigosas. Quem quiser animar um grupo de amigos em torno do vinho lá em casa, tem sempre a possibilidade de recorrer aos seus mistérios.
Como habitualmente, as escolhas da FUGAS tiveram como baliza dez vinhos situados numa gama de preço entre os sete e os 13 euros. É discutível que se possa comparar um vinho situado na faixa de preço mais baixa do intervalo com outro situado no limiar dos 13 euros – há aqui quase uma diferença de 100%. Mas, entre os 7.5 euros e os 12.5 euros estão os vinhos que, para uma boa parte dos consumidores, se situam no segmento médio-alto. Nem são vinhos correntes, nem vinhos galácticos.
Depois, uma vez que os resultados desta prova vão ser divulgados num suplemento especial que o jornal brasileiro O Globo vai dedicar aos vinhos nacionais, no âmbito do programa Vinhos de Portugal no Rio (ver página 48), todas as propostas para a prova tinham de existir no mercado brasileiro. Dentro desse intervalo, as escolhas foram feitas com a ajuda preciosa de Jesus Caridad e de Hélder Almeida, os especialistas da área do vinho do El Corte Inglés. Todos os vinhos em prova estão, por isso, listados no catálogo dos supermercados do El Corte Inglés ou no seu Clube do Gourmet.
Para a prova foram convocados seis dos oito elementos do painel habitual da Fugas. Beatriz Machado, mestre em ciências da viticultura e enologia da Universidade da Califórnia e directora do serviço de vinhos do hotel The Yeatman, em Vila Nova de Gaia, Lígia Santos, uma engenheira que trabalha na área da gastronomia (foi a primeira vencedora do concurso masterchef em Portugal) e gere um estabelecimento de turismo rural na zona dos Arcos de Valdevez (as Casas da Li), o jornalista da RTP Luís Costa, Joe Álvares Ribeiro, administrador do grupo de vinhos Symington, Ivone Ribeiro, dona de uma loja de vinhos em Matosinhos, a Garage Wines e Pedro Garcias, jornalista do PÚBLICO. Por impossibilidade pessoal, estiveram ausentes o enólogo Álvaro van Zeller e o jornalista do PÚBLICO José Augusto Moreira.
Como é tradição, a prova desenrolou-se em dois momentos: de manhã, sem comida, e depois ao almoço, momento em que os vinhos foram sujeitos ao teste da vocação gastronómica. Como sempre acontece, houve vinhos que saíram muito bem no primeiro momento e perderam fulgor à mesa. Como aconteceu o contrário.
O Quinta da Covela Edição Nacional, um vinho da região dos vinhos Verdes que nasce nas margens do rio Douro, onde a casta Avesso conhece o seu local de eleição, foi um dos casos em que o vinho brilhou à mesa. Com o Quinta do Cume Reserva de 2014, um branco dos planaltos do Douro, aconteceu exactamente o contrário. Mas houve também alguns vinhos que mostraram o mesmo valor quer em momentos de convivialidade, quer na hora de se baterem com comida. O caso mais emblemático deste eclectismo aconteceu com o Duas Quintas de 2014, um branco duriense da casa Ramos-Pinto. Mas também o vencedor foi capaz de passar nos dois momentos com o mesmo grau de aprovação.
Para o teste da comida, o restaurante da Casas da Li (orientado pela membro do júri Lígia Santos) preparou um menu capaz de se ajustar à diversidade dos vinhos em questão – frutados, com e sem madeira, jovens ou já com um par de anos de garrafa, etc. Foram servidas espetadinhas mediterrânicas com vinagreta de mostarda, folhadinhos de camarão e salva, uma salada de salmão fumado com funcho e laranja, filetes de robalo com puré de batata-doce e presunto estaladiço, umas aplaudidíssimas lascas de Bacalhau confitado com puré de grão, crocante de broa e compota de três pimentos e, para rematar os pratos principais, um desafio: um tornedó de lombelo com barriga fumada e gnochis com molho de mostarda à antiga. O que foi suficiente para constatar que muitos dos brancos em prova (que, note-se, continuava a ser cega nesta fase do almoço) ficavam muito bem com um prato de carne.
O júri foi pouco influenciado pelo estilo dos vinhos ou pela sua proveniência regional. Vinhos com marcas evidentes de madeira, caso do Quinta do Cume ou do Paulo Laureano Reserva, ficaram lado a lado com vinhos mais directos e menos trabalhados pela marca da barrica, como é o caso do Duas Quintas ou o Cortes de Cima. E se nos lugares de topo ficaram vinhos de lote, também é verdade que os monocastas não se portaram mal. Neste caso em concreto, a Encruzado do Dão foi mais pontuada que a Viognier do Alentejo ou a Loureiro e Avesso nos Vinhos Verdes. Quanto ao protagonismo das regiões, o Alentejo e o Douro mantiveram um interessante duelo corpo-a-corpo nos cinco primeiros lugares, onde só o Dão com a sua casta emblemática, o Encruzado, se imiscuiu.
Vale ainda a pena notar que, em relação ao ano passado, a média de pontuação do júri desceu. O vencedor deste ano ficou-se nos 86.8 pontos, enquanto no ano passado o vencedor chegou aos 88.4 pontos. Da mesma forma, este ano houve três vinhos que ficaram abaixo dos 80 pontos – nenhum no ano passado. E também a distância entre o primeiro e o último se acentuou nesta edição, passando de oito pontos para 11.8 pontos este ano.