É difícil imaginar como é que a rapariga que nos anos 70 se passeava por Estremoz com longos cabelos aos caracóis, calças de ganga remendadas e botas mexicanas, despertando a curiosidade dos locais, se transformou numa alentejana, cozinheira de primeira e produtora de vinho – e, já agora, um dos seus vinhos, o Monte dos Cabaços Reserva 2007, foi colocado pela revista Wine Enthusiast no 22º lugar da lista dos 100 melhores do mundo.
“Quando cheguei aqui, vinda da Holanda onde vivi entre os seis e os 16 anos, senti-me a cair num precipício, mesmo lá para o fundo”, conta. Estamos sentados à volta de uma mesa redonda numa quinta perto de Estremoz, num dia frio e chuvoso de um Maio atípico, com as pernas metidas debaixo de uma camilha, a apanhar o calor que vem do aquecedor eléctrico e a ouvir a história de Margarida Cabaço, dona do restaurante São Rosas e produtora dos vinhos Monte dos Cabaços e Margarida. Em cima da mesa, chávenas de café.
“As pessoas paravam-me na rua a oferecer dinheiro para comprar as minhas botas”, recorda, acendendo um cigarro. “As meninas aqui andavam de meias pelos joelhos e sapatinhos de atacar. Eu dizia para a minha mãe ‘as pessoas ficam a olhar para mim como se tivessem visto um bicho’”. Não conhecia quase ninguém, sentia-se deslocada, sonhava ir-se embora, implorava ao pai que a pusesse noutro lado, “nem que fosse num colégio interno”.
Mas o pai disse-lhe que tinha que acabar o liceu e foi quando andava ainda às voltas com a geografia e a História de Portugal – que conhecia mal depois de tantos anos na Holanda – que conheceu Joaquim Cabaço. “Eu tinha 17 anos, ele tinha 25 e vinha de muitos sítios. Saiu daqui aos 15 ou 16 anos, foi para Lisboa e assim que fez 18 começou a viajar, dois meses aqui, três ali.” Ela apaixonou-se e convenceu-se de que ia passar a viajar. “Mas ele nunca mais saiu daqui”. E, por isso, Margarida, já com o liceu acabado, comunicou aos pais que afinal também já não queria sair dali.
A primeira aventura, já ao lado de Joaquim, foi a abertura de uma loja em Estremoz, a Show Off. “Isto passa-se em 1979, 80. Fomos a Lisboa escolher as coisas e trouxemos roupa da Ana Salazar, que na altura tinha a marca Maçã, do Giuseppe Luigi que é o José Luís Barbosa, do Pedro Luz, do Philippe Martin”. Abriram e “as pessoas não percebiam o que era a loja”, onde havia roupa mas também música e se podia beber café. Para fazer publicidade às colecções, Margarida chegou a ir para o café central de Estremoz com um amigo, vestidos com os camuflados de Ana Salazar e com as etiquetas penduradas.
Mas a rapariga que achava Estremoz parado estava destinada a algo ainda mais radical. Ficou à espera do primeiro dos seus quatro filhos e, com Joaquim, decidiu mudar-se para o monte do Troca Leite, para uma casinha que não tinha luz nem água. A filha Marta Mateus tem estado a ouvir as histórias da mãe, que agora se cruzam com as suas memórias. “Era uma casa de um conto, foi aí que nós crescemos”, diz, recordando como ficavam as pessoas iluminadas pelos candeeiros a petróleo à noite.
Era uma autêntica aventura. “Pusemos um depósito em cima do telhado porque não havia água”, conta Margarida. “Fizemos uma casa de banho e uma cozinha, tínhamos um frigorífico a gás e uma televisão a cores que funcionava ligada à bateria do tractor. Um dia encontrei uma coisa fantástica, um ferro de engomar a gás. Estava farta de queimar roupa com o ferro com brasas.”
A descoberta do Alentejo
Foi aí, nesse monte longe de tudo, que Margarida se apaixonou pelo Alentejo. Já não eram as pessoas de Estremoz que a viam como uma ave rara. Os alentejanos do campo tinham outra sabedoria de vida e ensinaram-lhe muita coisa – aliás, tudo o que sabe sobre a cozinha do Alentejo. “Vivia na herdade uma daquelas senhoras, puras alentejanas, que me ensinou tudo, desde as ervas comestíveis às conservas, os fumeiros. Desidratávamos o tomate, que secávamos ao sol e guardávamos dentro de frascos de azeite. O Joaquim ia à caça e eu guardava as perdizes já cozinhadas ou a carne de porco depois da matança, conservada em banha.”
Foi arriscando cozinhados cada vez mais elaborados e para mais pessoas, ajudou um amigo a organizar festas, foi ganhando confiança e, sobretudo, fama de ser uma grande cozinheira. Um dia foi fazer um almoço para uma caçada na Serra d’Ossa, em que “não havia água, tivemos que levar tudo às costas”. Quando à noite chegou a casa, disse para o marido: “Estou farta de andar com a cozinha às costas, vou à procura de um sítio”. E assim, em 1994, nasceu o São Rosas, restaurante de cozinha alentejana em Estremoz.
Mudaram-se do monte para a quinta onde ainda hoje vivem e que pertencia desde há muito à família de Joaquim. Espreitamos lá para fora e vemos a vinha que se estende à nossa frente, batida pelo vento e a chuva. As uvas sempre foram para vender, mas, depois de ter o restaurante, Margarida começou a pensar: “Estou aqui a fazer a minha cozinha, tenho umas uvas fantásticas e estou a vendê-las a outro produtor, estou a promover os vinhos deles com os meus pratos e nunca vejo o resultado final das uvas, podem dar vinhos óptimos mas nunca saberemos.”
Até que um dia desafiou o marido a “experimentar fazer uma cuba”. Pediram a amigos que tinham adegas e avançaram. “Eu vinha às vinhas, provava as uvas e dizia ‘vamos lá misturar esta com aquela, vamos fazer uma cuba destas’ e atrás destes entusiasmos ficámos com 50 mil garrafas logo no primeiro ano.” Acharam que o melhor era manterem as actividades separadas: Joaquim trata da vinha durante todo o ano (têm 50 hectares e entre 75 a 80% das uvas são para vender) e, quando chega a altura da vindima, Margarida começa a andar por ali, a provar. “Temos a vantagem de poder escolher o melhor para nós”, diz.
“Desde que tivesse a parte técnica garantida pela equipa da adega [trabalha com a enóloga Susana Esteban], estava bem. Não estudei enologia, mas a escolha das uvas, isso é igual à cozinha. Quando me perguntam como aprendi a fazer vinho, respondo ‘da mesma maneira que aprendi a cozinhar, provando e misturando’. O vinho começa a fazer-se na vinha, com a prova das uvas. Provo e decido. Costumo dizer que cozinho sólidos e líquidos. Como lido todos os dias com sabores, paladares e aromas, as minhas papilas gustativas estão muito treinadas.”
Inicialmente tinham pensado fazer apenas um vinho para o São Rosas, que teria o mesmo nome do restaurante, mas o projecto foi crescendo. Deixamos, com pena, a mesa de camilha com o aquecedor por baixo, e enfrentamos o mau tempo para irmos até ao restaurante. Afinal, nada melhor do que provar os vinhos de Margarida com a sua comida, enquanto a ouvimos explicar o que pretende de cada um, com a ajuda de Marta, a filha, também apaixonada por vinho e que está a colaborar com os pais no projecto.
Saber esperar
“Agora vou ser um pouco mais técnica”, avisa Margarida. Mas continua a falar da mesma forma apaixonada sobre os seus vinhos e, enquanto os provamos, é muito fácil perceber o que ela quer dizer. “Os nossos vinhos não têm truques de enologia”, diz Marta. “Costumo dizer que o enólogo é importante quando alguma coisa corre mal”, acrescenta Margarida. Daí a importância da selecção das uvas na vinha. “As grandes adegas fazem análises, mas às vezes a uva tem o nível de açúcar certo enquanto a grainha está verde e nas análises isso não se detecta. Tem que se trincar para perceber se a grainha está crocante. Uma grainha verde pode deixar um verdor no vinho, como se estivesses a comer um marmelo. Há formas de corrigir isso mas o que queremos é o mínimo de correcções possível.”
A isto soma-se a vontade de manter a produção pequena – são actualmente entre 60 e 70 mil garrafas por ano, entre as cinco referências Monte dos Cabaços (reserva e colheita seleccionada branco e tinto) e Margarida (branco e tinto). “Podia estar a fazer 400 mil garrafas, temos uvas em quantidade para isso, mas cada um de nós tem uma dimensão ideal para trabalhar. Não me sentiria feliz a fazer 400 mil garrafas ou a ter um restaurante com 150 lugares.”
À mesa vão chegando os pratos alentejanos do São Rosas: ovos mexidos com espargos, túberas salteadas, uma deliciosa perdiz, sopa de tomate com ovo, excelentes bochechas de porco preto e, quando achamos que não é possível provarmos mais nada, um irresistível rabo de boi com nabos. Para, claro, tudo acabar nas sobremesas, entre as quais um óptimo pudim de água de Estremoz.
Margarida vai explicando cada vinho e percebe-se a liberdade que concede a si própria na forma como os faz. O Monte dos Cabaços Colheita tem Touriga Nacional, Alicante Bouschet, Aragonez e outras castas, mas em cada ano numa proporção diferente. “Não gosto de ficar presa à obrigatoriedade de uso da casta nem às percentagens. Se achar que o Aragonês não está bom nem sequer o ponho. O perfil do vinho é este mas com variações, com aquilo que o ano expressa. Isto não é Coca-Cola, não tem receita.”
O Colheita não estagia em madeira e o Reserva estagia durante um ano, mas Margarida prefere barricas usadas. “A barrica serve para que o vinho ganhe complexidade, mas não gosto de lhe conferir sabor de madeira.” Outra característica importante dos seus vinhos é que não são feitos para beber logo – e isto aplica-se também aos brancos. São vinhos pelos quais devemos saber esperar (o Margarida branco, por exemplo, feito à base da casta Encruzado, chegou ao mercado com quatro anos, depois de um estágio em madeira e a seguir na garrafa).
E esse foi um dos factores que chamou a atenção de Roger Voss, o editor da Wine Entushiast que escolheu o Monte dos Cabaços Reserva 2007 como um dos melhores vinhos do mundo no ano passado. “A família Cabaço acredita em lançar os vinhos quando eles estão prontos a ser bebidos”, escreveu Voss. “É por isso que agora é possível beber este Reserva pela primeira vez. É um magnífico e poderoso vinho, dotado de frutas pretas agora maduras.”
É um vinho que não passa despercebido – tem a mesma garra da adolescente de caracóis negros que, ao passar, fazia parar as pessoas nas pacatas ruas de Estremoz nos anos 70.