Fugas - Vinhos

Fabrizio Bensch/Reuters

Madeira e outras perspectivas

Por Rui Falcão

Apesar de uma inegável recuperação de prestígio e notoriedade dentro de fronteiras, os vinhos da Madeira persistem em manter-se afastados do imaginário nacional, longe de serem compreendidos ou assimilados pela maioria dos enófilos nacionais.

Se são poucos os que verdadeiramente se interessam pelos magníficos vinhos da Madeira, os que os provam, bebem e compram regularmente, são menos ainda os que realmente os compreendem e que conseguem ver para além de uma ou outra generalidade sem relevância maior.

Convenhamos, os vinhos da Madeira não são fáceis, não são imediatos e não têm aquela atracção instantânea que muitos outros vinhos generosos possuem. A acidez derrotante que os caracteriza e enriquece passa por ser um gosto adquirido, um paladar que é forçoso educar e que obriga a um esforço inicial por parte de quem os bebe. São vinhos de nicho, de excepção, e é nessa condição que eles se encontram e que muito provavelmente sempre se encontrarão. Nem poderia ser de outra forma, tendo em conta a produção tão limitada, fruto de um espaço físico tão limitado e de uma orografia tão alterosa que condiciona a área de vinha. A juntar a estas limitações naturais, há que atender que a produção se encontra dividida por um conjunto de produtores muito restrito, apesar da chegada inovadora e sempre bem-vinda ao sector de um novo produtor, a Cooperativa Agrícola do Funchal.

Os vinhos da Madeira são vinhos de culto, vinhos simultaneamente intelectuais e emocionais, intemporais mas brutais na aproximação, simultaneamente delicados e poderosos. São vinhos repletos de contradições e sobressaltos, de tensões e soltura, desdobrando-se numa roda-viva de emoções que comovem os iniciados mas surpreendem os noviços. São poucos os que os compreendem numa primeira abordagem perante a solidez da acidez, a riqueza de sabores, a intensidade de espírito, a profundidade e complexidade de nariz e boca.

Depois, há que dizê-lo, as inúmeras subcategorias existentes não ajudam à compreensão imediata de um vinho que pode surgir de formas tão diversas, atordoando os sentidos de quem não conheça os meandros de tantas designações, estilos e subtilezas. Serão poucos os que perdem tempo a entender as nuances de linguagem que separam um Colheita de um Frasqueira, as diferenças ténues no papel que implicam vinhos completamente distintos no estilo e complexidade. Quantos conseguirão distinguir entre as categorias três, cinco, dez, quinze, vinte, trinta, quarenta ou mais de cinquenta anos, o que representam e qual o estilo pretendido para cada uma das divisões? Quantos conseguirão perceber e identificar o nome e o papel de cada casta nos diferentes estilos, o significado de nomes como Sercial, Verdelho, Terrantez, Bastardo, Boal, Malvasia ou Tinta Negra nos rótulos?

Mas, apesar de o Vinho da Madeira não representar um cometimento fácil para todos, a realidade é que aqueles que se dão ao trabalho de o tentar compreender acabam invariavelmente apaixonados. O Vinho da Madeira consegue rapidamente ser transformado quase numa obsessão, um entusiasmo que é capaz de persistir para o resto da vida. Nenhum outro vinho consegue reunir tantos argumentos para instigar e alimentar essa paixão, para sustentar um amor que cresce com o conhecimento, com a descoberta dos múltiplos meandros e labirintos do único vinho vivo capaz de resistir à história.

Mas, para além das variedades tradicionais da ilha da Madeira, sobram ainda algumas castas extraordinárias, que infelizmente estão virtualmente extintas na ilha. Num espírito mais optimista da vida, assiste-se hoje ao reforço de plantação do Terrantez e a um suave despertar do Bastardo, duas das variedades mais interessantes e relevantes do Madeira. Por ora continua a perder-se pouco tempo e esforço com a Malvasia Cândida, variedade de origem levemente misteriosa que esteve na fundação do nome e prestígio dos vinhos da Madeira. Que neste momento exista em produção regular uma única vinha desta casta na ilha é motivo simultaneamente de preocupação e perplexidade face ao potencial das virtudes desta casta única. Sim, a viticultura é absolutamente desesperante e não há muitos locais físicos onde a plantar… mas não será fácil conter o espanto perante a falta de motivação de viticultores e produtores para a recuperar de uma forma mais activa.

Estranhamente, embora se percebam alguns dos fundamentos, o Moscatel é encarado como uma casta autorizada mas não recomendada, uma casta excluída da promoção e da produção, relegada para um papel mais que secundário na vinha e no vinho. O que, sinto necessidade de o salientar, me parece espantoso face à qualidade e estilo ímpar que a variedade proporciona na Madeira. Sim, é verdade que existem vinhos Moscatel em muitas paragens no mundo, e que o nome está banalizado, mas os velhos Frasqueira Moscatel da Madeira que tenho tido a ventura de provar têm-se sempre apresentado magníficos, sumptuosos, ricos e frescos sem demonstrar nenhum dos tiques varietais da casta, afirmando-se como exemplares excelentes de Vinho da Madeira.

O Vinho da Madeira é e será sempre um vinho de nicho, um vinho para especialistas e apaixonados, um vinho de convertidos à causa. Não há que ter ilusões a esse respeito e dificilmente poderia ser de outra forma, até pela escassez de produção. Nem poderia ser de outra forma face aos custos elevados, à especificidade da insularidade, à dimensão da Madeira, à escala da vinha e ao número muito limitado de produtores no activo. É um vinho rico e intelectual, um dos melhores do mundo, um vinho eterno e poderoso. Ainda está à espera para o comprovar?

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