Fugas - Vinhos

FERNANDO RICARDO

O Rolls-Royce já começou a andar

Por Pedro Garcias

Três anos depois de ter adquirido à Sogrape a história Quinta da Boavista, a dupla Marcelo Lima e Tony Smith apresentou os seus primeiros vinhos do Douro.
Durante anos, a Sogrape andou esmeradamente a recuperar a vinha da Quinta da Boavista, com os seus monumentais socalcos e mortórios. A propriedade de 39 hectares, famosa por ser o retiro do barão de Forrester nas suas viagens pelo Douro, situa-se na margem direita do rio, a poucos quilómetros do Pinhão, e era a fonte principal dos vinhos do Porto da marca Offley. Em meados de 2013, o grupo liderado pela família Guedes decidiu vender a quinta à dupla Marcelo Lima e Tony Smith (que anos antes haviam comprado a Quinta da Covela), entregando-lhes de mão beijada um verdadeiro “Rolls-Royce”. 

Mão beijada é uma força de expressão, claro. O negócio rendeu alguns milhões de euros (o valor continua a ser sigiloso), mas ia um pouco contra a corrente e a tradição. As grandes companhias estão sempre compradoras, nunca vendedoras. Na altura, os Symington continuavam a somar quintas e a Fladgate Partnership (Taylor`s, Fonseca e Croft) adquirira pouco tempo antes à família Falcão Carneiro a Wiese & Krohn, longeva casa de vinho do Porto especializada na produção de Tawny Colheita. 

Se fosse hoje, a Sogrape não teria vendido a Boavista. O Douro está cada vez mais na moda e não há na região muitas propriedades tão bonitas e com tanto potencial para produzir grandes vinhos como aquela. Na altura, a Sogrape precisava de realizar capital. No ano anterior tinha comprado as Bodegas Lan, na Rioja, por cerca de 70 milhões de euros, e também readquirira a participação de Joe Berardo no grupo. Por outro lado, a empresa já possuía mesmo ao lado da Boavista duas quintas históricas: o Seixo e a Quinta do Porto. 

Mas nenhuma tem os fantásticos socalcos da Boavista, com algumas vinhas plantadas há quase 90 anos. Após fecharem o negócio, Marcelo e Smith limitaram-se a pilotar o Rolls-Royce e logo em 2013 fizeram os primeiros vinhos tintos tranquilos, sob a orientação de Rui Cunha, que já tinha a seu cargo a enologia da Covela (Vinhos Verdes). Produzir vinho do Porto na Boavista é um projecto ainda sem data. Para mostrar ao que vinha, a dupla de investidores contratou como consultor o francês Jean-Claude Berrouet, que foi durante 44 anos enólogo do Château Petrus, o lendário tinto de Pomerol, Bordéus. Rui Cunha é o homem do terreno; Jean-Claude é o homem dos detalhes, que, como sublinhava Tony Smith, faz mais perguntas do que sugestões, conseguindo, com a sua simplicidade e conhecimento, levar a equipa ao melhor resultado. 

Na presença dos investidores, enólogos e técnicos de viticultura, os primeiros vinhos da Boavista foram apresentados recentemente no Porto e do evento sobrou uma certeza: está a nascer uma nova grande marca do Douro. Os quatro tintos provados confirmaram as (altas) expectativas criadas e desfizeram qualquer dúvida que houvesse sobre a excepcionalidade daquela quinta. São quatro magníficos vinhos, com nuances que reflectem a diversidade orográfica da propriedade e a especificidade das diferentes castas e parcelas – vinhos de terroir, em suma. 

Na história recente da região, o ano de 2013 não está entre os melhores. Esta colheita deu origem a vinhos menos alcoólicos e com mais taninos e acidez, vinhos que, em geral, necessitam de mais tempo em garrafa para afinarem melhor. Mas o que surpreende nos primeiros tintos da nova era da Boavista é a sua já apurada elegância. Isso é, sobretudo, evidente no Boavista Touriga Nacional, um vinho cheio de elegância, muito especiado, fresquíssimo e sem os excessos aromáticos de muitos vinhos estremes da casta. Um Touriga Nacional de antologia. Tem apenas 13,5% de álcool (não há milagres: Touriga Nacional com 15% de álcool é, na maioria das vezes, um xarope) e vai custar cerca de 20 euros. Este é um dos vinhos de “experiência” monovarietal que a dupla Rui Cunha-Jean-Claude Berrouet pretendem fazer. O próximo deverá ser um Tinto Cão. 

O segundo tinto apresentado foi o Boavista Reserva, que vai custar 40 euros. Nesta fase, vale menos do que o Touriga Nacional. É muito expressivo e rico de aroma e tem um belo músculo, mas acusa alguma secura de boca, com a madeira ainda demasido presente. E perde também para os dois outros tintos dados a conhecer, o Quinta da Boavista Vinha do Oratório e o Quinta da Boavista Vinha do Ujo, dois vinhos de parcela produzidos em pequenas quantidades (cerca de 600 garrafas de cada) que vão chegar ao mercado a cerca de 100 euros cada. 

Quando os provou pela primeira vez, Berrouet resumiu-os bem: “O Oratório é para Nova Iorque e o Ujo para Londres”. São ambos de vinhas bastante velhas, mas o primeiro tem origem em parcelas com mais exposição solar e o segundo em parcelas mais frescas. A diferença de álcool é pequena – o Oratório tem 13,5% e o Ujo 13% -, mas há uma identidade muito própria em cada um deles. 

O Oratório (o nome vem da forma de oratário que esta parcela de grandes socalcos de xisto apresenta) é um tinto mais Douro, imponente, de grande riqueza aromática, muito químico e picante. Um tinto de enorme lastro sensorial que vai seguramente conquistar grandes pontuações junto da crítica internacional. O segundo impressiona pela sua fabulosa frescura, pela sua complexidade de aroma e sabor, pelo seu ímpeto tânico e, surpresa maior, pela sua finesse. Extraordinário. Um tinto mais Velho Mundo que, juntamente com o Touriga Nacional, prova que há mais vida no Douro para além dos vinhos potentes, extraídos e com grande volume de álcool. Cem euros não é pouco, mas, se o compararmos com vinhos estrangeiros do mesmo nível de preços, vale bem o que custa. São vinhos assim, com esta qualidade e este preço, que fazem o prestígio de um país.
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