Fugas - Vinhos

MIGUEL MANSO

A santíssima trindade de vinhas, vinhos e mar

Por Rui Falcão

O termo “vinhos de climas frescos” faz parte dos sound bytes mais populares e que marcam de forma mais activa a actualidade do mundo do vinho, sentença aproveitada quase à exaustão por sommeliers, enólogos, produtores, comerciais, jornalistas especializados em vinho ou enófilos mais esclarecidos que não se coíbem de tanto invocar a frescura como ponto de atracção.

Uma máxima simples que define, ainda que de forma um pouco vaga e ligeiramente romantizada, um vinho produzido numa região que beneficia de temperaturas relativamente temperadas durante grande parte da fase de maturação da uva.

Um conceito de compreensão fácil e que consegue fugir das considerações mais clássicas e por vezes esotéricas que dividem os climas em rigores continentais, mediterrânicos ou marítimos descrevendo as condições climáticas de forma mais simples e intuitiva. Muito provavelmente não será o vocábulo mais preciso e rigoroso do mundo, mas cumpre com desenlace o seu papel informativo e explicativo.

Em termos práticos e facilmente identificáveis, as terras de climas frescos podem ser simbolizadas nacionalmente e quase intuitivamente pelas denominações Colares, Madeira e Açores, esta última dividida nas três denominações de origem açorianas de Biscoitos, Graciosa e Pico. Mas fora da realidade lusitana estas regiões poderiam ser facilmente representadas por denominações internacionais tão díspares como a região basca espanhola de Txakolina, a famosa Marlborough no litoral da Nova Zelândia, Willamette na região norte-americana especialmente fresca da costa do Pacífico situada no estado de Oregon. Ou ainda pela ilha de Santorini, no centro das ilhas Cíclades da Grécia no Mediterrâneo oriental.

Regiões temperadas pela presença do mar embora divididas por realidades absolutamente díspares que condicionam a identidade de cada região. O que as une é o facto de não serem atormentadas por temperaturas excessivas, mesmo durante a fase de floração e maturação da uva, adicionado pela presença constante de chuva ou humidade forte que se situam sempre acima dos padrões habituais das regiões circundantes onde se planta vinha.

A presença destas temperaturas moderadas e a comparência certa da chuva são dois factores especialmente importantes para a vinha devido a dois processos fisiológicos que ocorrem durante a fase de maturação da uva. O primeiro é conhecido como fotossíntese e expressa a matriz que a videira segue para criar energia sob a forma de açúcar que mais tarde vai ser transformado em álcool. Durante o amadurecimento o açúcar vai sendo canalizado para as uvas, tornando-as mais doces a cada dia que passa, ao mesmo tempo que a acidez vai sendo lentamente suprida. Este processo é significativamente mais célere e tumultuoso nos climas mais quentes e secos, onde as uvas ganham açúcar e ao mesmo tempo que perdem acidez num ritmo bem mais elevado e menos regrado. Mais açúcar descompensado por falta de acidez significa que os vinhos serão certamente mais frutados mas igualmente mais alcoólicos e pesados, provavelmente mais cansativos e sem a subtileza, elegância e frescura dos melhores vinhos.

A segunda consequência fisiológica da maturação da uva é conhecida como respiração ou transpiração, traduzindo o modelo pelo qual a videira queima alguns dos ácidos presentes na uva. Da mesma forma que a fotossíntese, a respiração ou transpiração é condicionada e regulada pelo calor ambiente, indicando que as uvas perdem a acidez mais rapidamente em condições de calor e insolação pronunciadas. Condições e circunstâncias que evidenciam que os vinhos de climas mais frescos e húmidos temperados pela influência marítima apresentam por regra um perfil mais elegante, fresco, leve e preciso que os vinhos oriundos de climas quentes, acrescentando uma tensão e vivacidade que são difíceis de encontrar em vinhos provenientes de regiões de climas mais quentes e secos.

Quanto mais a norte no hemisfério setentrional ou mais a sul no hemisfério austral, menor será a temperatura e menor será a incidência solar. Mas para além do afastamento da linha de Equador e da altitude, também ela condicionante da temperatura, a proximidade ao mar e à influência marítima é um dos principais factores de regulação e moderação da temperatura ambiente. A proximidade de grandes massas de água, sejam elas o mar, estuários de rios, mares interiores ou grandes lagos de água doce, ajudam a moderar as temperaturas de forma maciça, para além de acrescentarem beleza e dramatismo à paisagem vinhateira.

As paisagens condicionadas pelo mar são frequentemente descritas como um termo intermédio face à agressividade das regiões de clima continental e mediterrânica. Tal como nas regiões mediterrânicas as regiões de clima marítimo caracterizam-se por um longo ciclo de amadurecimento graças à presença de correntes de águas frias e às brisas marítimas que moderam as temperaturas e as horas de insolação. Ao contrário, porém, das regiões de clima mediterrânico, que se evidenciam pela secura de clima, as regiões de clima oceânico são frequentemente assoladas por chuvas que depositam água no solo, repondo as reservas freáticas necessárias à sobrevivência da videira. Chuvas que podem ser tão abundantes e condicionadoras do clima que poderão acabar por coagir de forma severa os vinhos produzidos nestas regiões.

Mas, apesar de sistematicamente belas e todas as benesses impostas pelas chuvas intensas, as regiões vinhateiras de forte influência marítimas nem sempre são um mar de rosas. Algumas mais extremadas, como as denominações de Colares, Biscoitos, Graciosa, Pico ou Txakolina, têm mesmo de lutar pela simples tarefa de amadurecer as uvas. Para estas regiões, a luta chega ao ponto da simples viabilidade, obrigando a travar uma batalha constante para conseguir obter uvas suficientemente maduras que autorizem a elaboração de vinho de forma consistente.

Outras paisagens, entre as quais se destaca a ilha grega de Santorini, continuam a sofrer das amarguras do clima quente e seco da região, apesar da influência saudável e retemperadora do mar. Neste caso poderíamos mesmo garantir que sem a influência directa do mar mediterrânico os vinhos de Santorini pura e simplesmente nem existiriam. O que estas regiões têm em comum, para além do clima moldado pelo mar, é uma beleza extrema que só os grandes mares e oceanos conseguem emprestar. Uma beleza selvagem e endémica que se apresenta diferente em cada região mas que garante uma monumentalidade e beleza plástica às vinhas e aos vinhos que nenhum outro elemento conseguiria igualar.

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