Fugas - Vinhos

Recordações do palato de um vivo

Por Manuel Carvalho

João Paulo Martins foi aos baús da memória e apresenta-nos um livro com uma selecção de crónicas que atravessam o quarto de século que mudou o vinho português. E fez um livro delicioso, bom para degustar.

João Paulo Martins anda há mais de um quarto de século ora a estimular, ora a moer o juízo da sua vasta legião de leitores com a apologia do vinho. A sua carreira é paralela à extraordinária evolução dos vinhos portugueses depois de 1990 e é impossível não estabelecer um nexo de causalidade entre os textos produzidos pela geração de jornalistas de vinho à qual João Paulo Martins pertence e a mudança de atitudes de enólogos e empresas em direcção à qualidade. A selecção de artigos que publicou em vários jornais depois de 1989, entre os quais o PÚBLICO, é por isso um bom testemunho dessa conjugação.

No seu livro “Histórias com Vinho e Outros Condimentos”, lançado pela Oficina do Livro, podemos perceber melhor a sua sabedoria e paixão pelo vinho e, ao mesmo tempo, descobrir muitas pistas para entendermos a razão pela qual os vinhos portugueses estão hoje no lugar onde estão.

Dono de pena afiada na qual muitas vezes se combina um humor fino com a propensão para a polémica e a crítica contundente, João Paulo Martins não é, nem de longe nem de perto, um autor consensual. E essa é uma das suas primeiras virtudes. Muitos enólogos e produtores queixam-se da sua presumível arrogância. Outros acusam-no de ser pouco ecléctico nas escolhas. Mas nenhum lhe nega profissionalismo, um nariz de prova especialmente talentoso e uma especial dedicação ao vinho. E poucos resistem a considerar que os seus textos na imprensa, com destaque para a Revista de Vinhos, ou os seus guias anuais que se tornaram best sellers, foram determinantes para criar um público de consumidores ávidos e exigentes, uma das molas que obrigaram adegas e enólogos a mudar para melhor.

Neste seu livro entram crónicas de diferentes proveniências. Há textos da Revista de Vinhos ou do Expresso que, seguramente, muitos dos seus leitores regulares ainda hão-de conservar na memória. Mas há também artigos de publicações de circulação restrita, como a revista Metrópoles, que poucos devem conhecer. A natureza dos textos diverge e o foco ainda mais. A procura de uma certa intemporalidade que um livro como este exige eliminaram da escolha temas datados ou polémicas circunscritas a um tempo que já não existe – o que, em alguns casos, se lamenta mas, necessariamente, se entende. Nas páginas do livro há notas sobre o fluir de um tempo de rápida mudança, com textos sobre a temperatura dos vinhos ou sobre a recente revolução dos vinhos brancos e uma ou outra experiência pessoal – como a melhor refeição da vida do autor. Mas é a cultura do vinho no quotidiano, a sua história ou o seu cruzamento com a gastronomia que domina o livro.

Directa, eficaz e comprometida, a prosa de João Paulo Martins é fluida e atraente, muitas vezes temperada com um humor cínico no qual o autor é mestre. O livro lê-se como se devem ler os bons livros: com prazer e sem hesitações. Os temas dão-nos instrumentos de compreensão e chaves para se decifrar o denso, complexo e entusiasmante mundo do vinho, onde a História se cruza com os afectos, a alimentação com a cultura, a ciência com a tradição. Um livro para degustar, portanto. De preferência na companhia de um bom Porto, um tinto de garbo ou um branco com classe.

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