Todos os anos, um grupo de jornalistas e outros amigos faz uma incursão a Trás-os-Montes para um devaneio gastronómico. Cada um tem que levar duas ou mais garrafas de grandes vinhos. É uma espécie de carnaval da mesa antes da abstinência pascal. A vida são dois dias e esta viagem dura três, quase sempre passados a comer e a beber. Coisa de bárbaros, claro. Bebe-se vinho de várias regiões e países e há mais ou menos uma constante em todas as refeições: acaba-se quase sempre com vinho velho da Bairrada e algumas garrafas de grandes vinhos do Alentejo ou do Douro ficam pela metade, sem clientes para o resto.
Basta termos dois vinhos diferentes para preferirmos um ao outro e, quando a opção se estende por dezenas de garrafas, a preferência da maioria recai sempre nos vinhos mais frescos e menos alcoólicos. E, goste-se ou não, os vinhos bairradinos, ou do Dão, são muito mais frescos e digestivos do que os do Douro ou do Alentejo - em contrapartida, estes são muito mais apelativos em novos. Colares também é um spot para os amantes dos vinhos velhos e o seu segredo reside na frescura que o Atlântico fornece e na robustez tânica do Ramisco, a principal casta tinta da região. Ora, acidez e taninos são dois elementos decisivos para a longevidade e o vigor de um vinho. E acidez e tanino é o que não falta no Dão (dados pelo Alfrocheiro e pela Roriz) e na Bairrada (pela Baga).
Há vinhos velhos destas duas regiões que se batem com o que de melhor se faz no mundo. Basta pensar em alguns brancos e tintos do Bussaco (feitos com uvas das duas zonas), nos lendários vinhos do Centro de Estudos de Nelas da década de 60 do século passado ou nas melhores colheitas dos tintos bairradinos Gonçalves Faria, Caves São João, Aliança, Quinta da Dôna, Quinta de Baixo, Casa de Saima, Quinta da Rigodeira, Sidónio de Sousa, Solar das Francesas, Valdarcos, Caves da Montanha, Caves Velhas, Caves do Barrocão, Cooperativa de Souselas, Cooperativa de Vilarinho do Bairro, Luís Pato e Quinta das Bágeiras, entre muitos outros. Em jantar recente com grandes vinhos franceses, de Bordéus, Borgonha e Châteauneuf-du-pape, quem mais brilhou foi um Porta dos Cavaleiros 1966, do Dão, e um Caves São João 1978, da Bairrada.
Pela quantidade de grandes vinhos velhos que ainda é possível encontrar a bom preço, a Bairrada, mais do que o Dão, é um verdadeiro paraíso na terra para os enófilos. E o melhor está muitas vezes guardado em garrafas sem rótulo que vão sobrevivendo em garrafeiras particulares. Na Bairrada, era comum as famílias irem às caves e às cooperativas engarrafar vinho em novo para consumo particular que envelheciam depois em casa. Há inúmeros casos de vinhos extraordinários envelhecidos dessa forma. Recentemente, num encontro de final de vindima na aldeia de Arcos, em Anadia, foi aberta uma garrafa de um desses tintos, da colheita de 1933, e o vinho estava mais vivo, fresco e inteiro do que muitos Bairrada mais jovens e afamados. Um assombro. Só o Solar das Francesas 1963, também bebido há pouco tempo, provocou uma emoção semelhante. O vinho parece frágil, mas quando abre e estabiliza no copo deixa-nos sem palavras.
No entanto, se tivéssemos que eleger um vinho para uma hipotética disputa com os melhores do mundo seria um Baga de 1985 comemorativo do Centenário da Estação Vitivinícola da Beira Litoral. Deste vinho, lançado em 1987 pela Estação Vitivinícola da Bairrada, foram cheias mil magnuns e uma delas foi aberta no mesmo encontro de Arcos, onde também sobressaíram um garrafeira de 1974 da Junta Nacional do Vinho e um Quinta da Dôna 2001, ambos excelentes.
Simão Póvoa, técnico da Estação e enólogo responsável pelos vinhos Bussaco, lembra-se bem desse Baga de 1985. “Foi lá muita gente encher garrafas e garrafões. Era um vinho que custava uns 16 escudos o litro”, recorda.
Há muitos vinhos velhos que impressionam sobretudo pela sua frescura e raça. Mas o Baga 1985 da Estação Vitivinícola é muito mais do que isso. É um vinho completo, imaculado, de uma complexidade, refinamento e harmonia assombrosas. Ao fim de 31 anos, parece estar no seu auge. Ainda vai durar muito tempo, mas dificilmente irá ficar melhor do que está. A sua limpeza aromática é inacreditável. Não há nada de velho ou de desviante a manchar as notas químicas e balsâmicas de evolução em garrafa. Na boca, é igualmente límpido e preciso, revelando uma profundidade e um comprimento espantosos. Os taninos são sedosamente impetuosos e a acidez é seivosa. Se há vinhos perfeitos, este é um deles.
Mas há um pequeno segredo por trás deste 1985. É um Baga, mas não 100% estreme. Segundo Simão Póvoa, também levou um pouco de uvas de Jaen, Alfrocheiro, Tinto Cão e de outras castas existentes na vinha da Estação Vitivinícola. Este contributo pode ter feito toda a diferença, mas não diminuiu o carácter bairradino do vinho. Na verdade, o Baga 1985 do Centenário da Estação é a Bairrada engarrafada. Pode ter levado uvas de castas com mais tradição noutras regiões, mas no aroma e no sabor, no vigor e na frescura, é um Bairrada autêntico. Autêntico e único. Um tinto antológico, capaz de, em prova cega, bater qualquer grande vinho do mundo.
O meu melhor Bairrada de sempre
Desafiámos quatro personalidades, todas ligadas à Bairrada, a eleger o melhor vinho velho desta região que já beberam e a explicar o que tinha de especial. Eis as respostas.
Dirk Niepoort
(Quinta de Baixo)
Dores Simões 1982
Perfeito. Depois de um grande Barolo e de um grande Borgonha, o melhor vinho de uma certa noite (fora o Porto). Expressivo, com uma cor linda, leve e fresca, aromático, vibrante, calcário puríssimo, equilibrado, fresco e longuíssimo. Fantástico.
Mário Nuno Sérgio
(Quinta das Bágeiras)
Caves São João 1961
O vinho que mais me marcou
foi o Caves São João 1961. Adorei também o 1966, o meu ano de nascimento. Marcou-me profundamente pela frescura, pela acidez, pela especiaria, pelas notas de caruma.
Na Baga, quando os vinhos são velhos, é comum surgir um toque de resina. No 1961 está tudo muito integrado. O vinho perdura na boca, é longo, fresco e elegante ao mesmo tempo.
Luís Pato
(vinhos Luís Pato)
Gonçalves Faria 1990 Tonel 5
A Baga no seu esplendor, sem madeira, apenas com os fumados que só o solo argilo-calcário dá. Um Baga da velhice das vinhas, da colheita, da natureza, do Faria a falar com as videiras. Biodinâmica na sua expressão mais pura. O homem a falar com a natureza terrena e etérea.
Luís Lopes
(director da Revista de Vinhos)
Casa de Saima 1990 Tonel 10
Se tiver que escolher só um, tarefa quase impossível, será o Casa de Saima 1990 Tonel 10. E destaco este vinho porque consegue evidenciar de forma sublime duas facetas da Baga nem sempre coincidentes: a intensidade e frescura trazidas pelos taninos sólidos e perfeita acidez, e uma suprema elegância, complexidade e, até, delicadeza, com notas balsâmicas, tabaco, especiarias exóticas.