Quando uma empresa apresenta os seus novos vinhos acrescentando-lhe um velho generoso feito a partir de lotes que variam entre os 40 e 80 anos é caso de pensar que em causa está um privilégio. A verdade é que em Portugal (e no mundo) não há muitas empresas como a José Maria da Fonseca a poderem dar-se ao luxo de dispor nos seus espólios de vinhos como o Bastardinho. Não apenas por ser velho. Também porque é um vinho extraordinário. E ainda mais porque é o último capítulo de uma história de século. Depois desta edição de 1200 litros deste licoroso que chega ao mercado lá para Janeiro, sobrarão nas caves da José Maria da Fonseca uns 20 litros de um Bastardinho velhíssimo, com mais de 80 anos. E vai ser preciso muito tempo até que uma história congéneres possa voltar a ser escrita.
Durante gerações, a casta a que os viticultores da margem sul chamavam Bastardo de Azeitão (que na verdade, e de acordo com o enólogo Domingos Soares Franco é a francesa Trousseau) foi cultivada na faixa de terreno que vai da Costa da Caparica até ao Lavradio. O crescimento urbano das últimas décadas foi, no entanto, extinguindo o seu habitat. As vinhas foram dando lufar a bairros novos e, lenta mas inexoravelmente, o Bastardo foi desaparecendo do mapa. Domingos Soares Franco lembra-se da última entrega de uvas desta casta nas adegas da empresa familiar, aí por volta de 1983. “Era cerca de uma tonelada que vinha de uma vinha com 90 anos e entretanto foi arrancada. Tinha 18 graus de álcool provável”, diz Domingos Soares Franco. Desde então, as entregas acabaram a vinha de Bastardo de Azeitão que existe, de meio hectare, foi plantada pela família Soares Franco em 2005.
O lançamento no mercado do que resta deste vinho representa por isso o “canto do cisne” dos bastardinhos. É um vinho que Domingos Soares Franco define como um “super-hiper dos licorosos portugueses”. Um licoroso capaz de se bater com qualquer congénere nacional ou internacional. E o pequeníssimo lote que resta será “o topo do topo”. Ainda mais velho, mais concentrado, mais intenso e mais complexo. Indo para lá da qualidade da presente edição, que já de si é extraordinária, pode ser que seja capaz de relançar o interesse por esta casa outrora famosa e relativamente abundante. Ou talvez a história desta variedade e deste vinho acabe de vez. O que não deixa de ser uma perda para a diversidade do vinho de Setúbal. E de Portugal.
A feição DSF
Não é que no legado da José Maria da Fonseca, uma casa com 200 anos de memórias, não haja outras raridades. Há. Moscatéis como o de 1911 ou outras edições deste generoso fazem parte da sua tradição. E do seu sucesso, ainda que os licorosos não representem hoje mais de 15% do volume de negócios desta empresa que factura mais de 20 milhões de euros por ano e coloca no mercado mais de 12 milhões de litros de vinho engarrafado. A maior parte, cerca de 80%, vai para os mercados externos, onde a empresa tem ligações longas e consistentes em mercados tão diversos como o Canadá ou a Noruega – o Periquita é vendido neste mercado escandinavo há mais de 40 anos. E em Portugal o negócio corre de feição: no ano passado e este ano o crescimento das vendas está na ordem dos 20%, façanha que é justificada com a criação de uma distribuidora própria. E neste resultado não entra a cedência à pressão dos preços baixos. “Nós vendemos vinhos, não damos vinhos”, ironiza António Soares Franco, o administrador da empresa.
Nos vinhos da nova gama apresentados pela José Maria da Fonseca entram conceitos tão diversos como o Lancers sem álcool ou o majestoso Periquita Superyor. Não é difícil encontrar nesta gama tão diversa uma identidade comum. Domingo Soares Franco é um enólogo de uma escola que prefere a austeridade à exuberância dos aromas ou à opulência da concentração. Os seus vinhos são precisos, directos, polidos, modernos sem perderem as âncoras às regiões e às variedades que lhes dão sentido. Nem sempre são vinhos fáceis, até porque são por vezes comercializados sem que tenham passado pela prova do tempo que lhes molda a estrutura tânica – a tentação para vender depressa vinhos imaturos é, infelizmente, um drama que afecta até empresas clássicas. Mas são grandes vinhos.
São-no em primeiro lugar em resultado de opções na vinha e na adega. Que levam um branco dominado pela Sauvignon Blanc a apresentar uma secura e uma acidez que o afastam dos parâmetros aromáticos da casta e o tornam bem mais próximo da secura e frescura garantida, por exemplo, pela Arinto. Que justificam uma interpretação do Douro na qual a Touriga Nacional (que, como se sabe, é generosa nos aromas e na intensidade de fruta na boca) perde o protagonismo na bem mais vetusta Touriga Franca. Que justifica a aposta na Castelão, uma casta extraordinária quando cumpre o seu potencial mesmo que nunca perca uma certa rusticidade.
Com ou sem pequenos tesouros nacionais como o Bastardinho, a José Maria da Fonseca está em Setúbal, no Alentejo ou no Douro para ser o que é. Sem condescendências, nem tentações pela moda – Domingos Soares Franco justifica as suas escolhas no Douro como uma forma de ver a região “de fora para dentro”, ou seja, sem seguir as tendências dominantes da moderna escola de enologia da região. Os seus vinhos são exigentes e dificilmente enquadrados num gosto padrão que ainda sofre a influência da doçura e da fruta jovem e madura. São vinhos que requerem comida para se mostrarem e, principalmente, de tempo em garrafa. Mesmo que esse encargo seja outorgado aos consumidores, não deixam de valer a pena.
Colecção Privada Sauvignon Blanc 2015
Pontuação: 86
Região: Península de Setúbal
Castas: Sauvignon Blanc (85%), Verdejo (15%)
Graduação: 12.5%
Preço: 9,90€
Cultivada em solos argilo-calcários, a Sauvignon Blanc revela-se aqui mais contida na sua expressão aromática – embora sejam perceptíveis aromas exóticos de maracujá -, mais mineral e com uma acidez mais marcada. O resultado é um branco personalizado, com bom volume e uma boa aptidão gastronómica.
Periquita Superyor 2014
Pontuação: 93
Região: Regional Península de Setúbal
Castas: castelão (90%), Cabernet Sauvignon (7%), Tinta Francisca (3%)
Graduação: 14%
Preço: 40€
Fruta preta, notas de cedro, especiaria, barrica bem integrada, num conjunto muito intenso e elegante. Na boca é um vinho tenso, determinado por uma dimensão tânica ainda muito marcada pela juventude, com a fruta a amparar-se também numa magnífica acidez que lhe confere profundidade e frescura. Harmonioso e bem balanceado, é um tinto imponente, com músculo e carácter, que já dá prazer beber à mesa mas que ainda está para mostrar tudo o que vale.
José de Sousa Mayor 2014
Pontuação: 89
Região: Regional Alentejano
Castas: Grand Noir (60%), Trincadeira (30%), Aragonez (10%)
Graduação: 14.5%
Preço: 20€
Baseado na Grand Noir, uma casta da família da Alicante Bouschet que quase caiu no esquecimento, este alentejano da zona de Reguengos é um tinto subtil e interessante. Macio, como é timbre da região, aroma franco e aberto com boa fruta e sugestões vegetais, tempera bem uma sensação de doçura no seu bom volume e estrutura. É um falso discreto, por não ser impetuoso nem raçudo. A finesse é aliás o seu principal predicado.
Domini Plus 2014
Pontuação: 92
Região: Douro
Castas: Touriga Franca (95%) e Touriga Nacional (5%)
Graduação: 14%
Preço: 35€
Este Douro é magnífico e diferente. O seu aroma, com notas florais e de bosque, toques de uva passa e chocolate branco, é muito original e atraente. Neste momento, é ainda muito jovem e deixa transparecer essa juventude num volume de boca no qual o tanino revela ainda alguma rugosidade e adstringência, que a presença de fruta de grande qualidade e frescura vai equilibrando. Profundo, com imenso carácter e personalidade, é um vinho que dá prazer mastigar e augura um futuro brilhante.
Bastardinho 40 anos
Pontuação: 97
Região: Península de Setúbal
Castas: Bastardo (Trousseau)
Graduação: 18%
Preço: 250€ (garrafas de meio litro)
Este vinho apresenta-se com um aroma incrível que determina todo o sentido da sua prova. É um vinho difícil de descrever, o que sublinha a sua enorme complexidade e originalidade. Notas de esteva, de bosque, melaço, canela, impõe-se na boca pela sua viscosidade da qual irradia de imediato uma acidez vibrante, onde se percebe já algum vinagrinho do tempo, que dá lugar a uma mineralidade crocante que lhe acentuam a graça e o afastam de qualquer possibilidade de ser cansativo. Não é, longe disso. É um vinho extraordinário, com uma intensidade rara e uma persistência indescritível. Uma obra prima.