Menos de cinco anos depois de ter comprado, por cerca de 50 milhões de euros, as Bodegas Lan, na Rioja, a Sogrape começa o ano de 2017 quase sem dívidas (ver PÚBLICO de dia 27 de Janeiro), com uma nova imagem corporativa (uma tocha transportando “um legado de vinhos originais”) e mais um investimento estratégico: a compra de uma quota da Liberty Wines, uma das mais importantes distribuidoras do Reino Unido. Setenta e cinco anos depois de ter sido criada, a empresa atravessa um momento especial.
Especial não só por estar mais sólida do que nunca, após ter atingido em 2016 a maior facturação de sempre (cerca de 215 milhões de euros), mas porque estes resultados acontecem na mesma altura em que a família Guedes — que detém a maioria do capital da Sogrape — se debate com a doença de Salvador Guedes (sofre de Esclerose Lateral Amiotrófica, enfermidade degenerativa que, em 2015, o obrigou a abandonar o cargo de presidente da companhia, agora ocupado pelo irmão, Fernando Guedes).
Antes de deixar a presidência, Salvador preparou a transição e, mesmo só comunicando com os olhos e já sem qualquer tipo de mobilidade, continua a ir todos os dias à empresa, mostrando com o seu emocionante exemplo a força do legado que o pai, Fernando Guedes, e, antes deste, o avô, Fernando van Zeller Guedes, foram passando às gerações seguintes. No passado dia 27 de Janeiro, Salvador Guedes também se associou à celebração dos 75 anos da Sogrape, que, longe dos holofotes televisivos, juntou no solar Honra de Azevedo (Vila Verde) o actual Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, dois ex-presidentes (Cavaco Silva e Jorge Sampaio), vários ministros, políticos de todos os quadrantes, banqueiros, gestores, empresários e muita gente ligada ao sector do vinho.
Ao todo, foram cerca de 500 convidados, num jantar com direito a um miniconcerto de Mariza e a algumas surpresas: sem aviso prévio, o ministro da Agricultura, Capoulas Santos, agraciou a Sogrape com a medalha de honra do Ministério da Agricultura e o Presidente da República atribuiu a Fernando Guedes, o patriarca da família (CEO da empresa entre 1987 e 2000, ano em que cedeu o lugar ao filho Salvador) a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique. Duas condecorações que, como sublinharam Capoulas Santos e Marcelo Rebelo de Sousa, distinguem um percurso empresarial notável e também uma forma distinta de estar na vida e nos negócios. Se a Sogrape chegou até onde chegou, se hoje é a maior empresa de vinhos portuguesa e uma das maiores do mundo, foi porque soube olhar para cada momento histórico com uma visão de longo prazo e aproveitar as oportunidades que as crises geram, respeitando sempre a máxima imposta pelo fundador: “Primeiro fazemos amigos, depois fazemos negócios”.
O factor Mateus
A Sogrape nasceu no auge da Segunda Guerra Mundial, quando o negócio do vinho estava praticamente paralisado. A exportação de vinho do Porto baixara de cerca de 80 mil pipas para pouco mais de 10 mil e o envolvimento na guerra da Inglaterra e da França, os dois principais mercados, ainda piorava mais o cenário. Visionário, Fernando van Zeller Guedes terá, no entanto, vislumbrado na crise do vinho do Porto uma oportunidade para o vinho de mesa e, no Verão de 1942, juntamente com o irmão Roberto, convenceu vários empresários portugueses, franceses, suíços e belgas radicados no Porto a criarem uma empresa de vinhos. E foi assim que, em 22 de Julho desse ano, com 16 sócios e um capital de 625 contos, surgiu a SOGRAPE- Sociedade Comercial dos Vinhos de Mesa de Portugal.
Três meses depois foram lançados os primeiros vinhos, comprados no Douro, sob as marcas Cambriz, Vila Real Branco, Granado Tinto e Mateus Rosé. As três primeiras já não existem, mas o Mateus Rosé conseguiu converter-se numa marca global e sobreviver até hoje. Em boa verdade, tudo o que a Sogrape é deve-o ao Mateus Rosé. Não admira, por isso, que não tenha havido champanhe na grande festa do passado dia 27 de Janeiro. O vinho de boas-vindas foi o famoso rosé, o mesmo que causou uma epifania ao guru Robert Parker, quando, durante a sua lua-de-mel, passou por Portugal e se encantou com o vinho. O mesmo rosé que conquistou personalidades famosas como Jimmy Hendrix, Elton John ou a rainha de Inglaterra; que foi servido em cimeiras destinadas a aplicar sanções a Portugal; e que levou o comandante Frank Borman, o primeiro astronauta a circundar a Lua, a dizer: “Só lamento, quando voava à volta da Lua, não ter vinho Mateus para me deliciar.”
O facto de se tratar de um vinho apelativo com uma garrafa diferente e um marketing arrojado e original ajudou ao sucesso do Mateus Rosé, mas o factor decisivo, como fez questão de enfatizar o actual presidente da empresa, foi o modo de estar nos negócios do seu avô e fundador, Fernando Van Zeller Guedes. A forma como a Sogrape entrou a sério em Londres, a montra mundial do vinho, numa altura em que a empresa atravessava dificuldades, na sequência da quebra do mercado do Brasil, é reveladora dessa ética negocial. Em 1956, Fernando Van Zeller Guedes foi visitar Sidney Rawlings, o director da influente distribuidora Rawlings & Sons, no hospital St. Thomas, em Londres, onde entrara com problemas cardíacos.
Os dois simpatizaram um com o outro e Sidney Rawlings prometeu-lhe estudar uma possível parceria quando saísse do hospital. Depois de regressar a Portugal, a Sogrape recebeu uma encomenda do restaurante Braganza, de Londres, de 200 caixas de vinho. Fernando Van Zeller julgou que a encomenda tinha sido intermediada pela Rawlings & Sons e mandou enviar uma nota de crédito à distribuidora com o valor da respectiva comissão.
Algum tempo depois, recebeu um telefonema da Rawlings, a dizer-lhe que não tinham direito a essa comissão, porque não tinham sido intermediários, mas que, a partir daquele momento, aceitavam ser os agentes da Sogrape em Inglaterra. Quinze anos depois, a Rawlings & Sons já comercializava 340 mil caixas (mais de 4 milhões de garrafas) de Mateus Rosé.
Depois de Londres, o sucesso do Mateus estendeu-se aos Estados Unidos — país que, em 1974, após a Revolução de Abril, importou 20 milhões de garrafas, temendo que Portugal se convertesse numa nova Cuba e a marca pudesse acabar — e nunca mais parou.
Foi com os lucros do Mateus Rosé que a Sogrape começou a ganhar músculo e a expandir-se para além da sua região seminal, o Douro. Primeiro ao Dão, depois à Bairrada, a seguir aos Vinhos Verdes e mais tarde ao Alentejo. Pelo meio, em 1987, reforçou a presença no Douro, com a compra da histórica A. A. Ferreira, incorporando três quintas emblemáticas da região e tornando-se líder no mercado nacional de vinhos do Porto, para além de passar a ter no seu portefólio o mais famoso vinho tinto português, o Barca Velha. Em 1995, adquiriu a Forrester, detentora da marca Offley, e, em 1997, deu o primeiro grande passo na sua estratégia de globalização, com a compra da Finca Flichman, em Mendoza, uma das maiores empresas de vinhos da Argentina.
Dez anos mais tarde, e já depois de, em 2002, ter comprado a histórica Sandeman, colocou um pé noutro continente, com a aquisição da neo-zelandesa Framingham Wine Company. No ano seguinte adquiriu, no Chile, o Château Los Boldos, detentor de 270 hectares de vinha e de marcas bem posicionadas no mercado mundial.
A última grande investida deu-se em 2012, com a aquisição das Bodegas Lan, uma grande empresa da Rioja também com vinhas e adega nas Rias Baixas (Bodegas Santiago Ruiz, em Rosal) e marcas em Ribera del Duero (Marquês de Burgos) e Rueda (Duquesa de Valladolid). Ainda em 2012, e por uma verba próxima dos 80 milhões de euros, a familía Guedes e o seu sócio minoritário (a família Silva) recompraram a quota de 32% que Joe Berardo tinha adquirido em 2006 à família Carmo. Dois grandes investimentos num ano em que o país ainda vivia sob as rédeas da troika e a Europa continuava imersa numa grave crise económica e financeira. Mas o que era isso comparado com a Segunda Guerra Mundial, quando a Sogrape nasceu?