Fugas - Vinhos

Fernando Veludo/NFactos

Os dilemas das harmonizações

Por Rui Falcão

Vinho é simultaneamente sinal de tradição, cultura, emoção e prazer. Mas poucos conseguirão imaginar o vinho sem a presença de comida, sem o suporte formal e informal da gastronomia.

Uma ligação que é ainda mais forte e natural nos países produtores europeus tradicionais, sobretudo naqueles que assentam fronteiras na bacia do Mediterrâneo, civilizações onde o vinho ocupa uma presença obrigatória à mesa nos momentos mais nobres da família, instantes considerados como tempo de qualidade onde se partilham conversas e emoções.

Mas, apesar dessa ligação inequívoca e tão instintiva, a maioria continua a sofrer dificuldades claras no momento de estabelecer harmonizações perante a decisão de ter de escolher um vinho para acompanhar um determinado prato. Apesar de a experiência e a história se terem encarregado de criar algumas associações intuitivas, associando pratos regionais a vinhos regionais, preceito que habitualmente funciona, somos cada vez mais bombardeados com receitas novas e ingredientes recentes que não fazem parte do património regional ou da tradição nacional ou local, colocando-nos perante novos dilemas. Mas a tradição pode ao mesmo tempo ser um empecilho, ao prender-nos a regras que nem sempre são úteis ou actuais.

Talvez por isso seja tão comum a dificuldade em escolher vinhos para acompanhar uma refeição. Talvez por isso se sintam tantos constrangimentos e tantos receios perante a dificuldade na escolha como se existisse um padrão estabelecido do que será correcto e do que será absurdo. A mensagem mais importante nas tentativas de harmonização é que não existem regras formais e o que funciona para uns poderá não funcionar para outros. O que funciona para nós, portugueses, poderá ser considerado um anátema para um sueco ou para um chinês.

Mais do que certos e errados, fará mais sentido procurar descobrir as nossas preferências pessoais, a sensibilidade individual, o gosto pessoal. Sim, é mais ou menos consensual que algumas harmonizações funcionam perfeitamente como se se tratasse de um casamento celebrado no céu. Mas outras escolhas menos óbvias são igualmente impressionantes e poderão ser excelentes surpresas. Acima de tudo, vale a pena ser ousado e pensar fora da caixa e dos dogmas que acompanham as coisas do vinho.

Peixe com vinho branco e carne com vinho tinto? Queijo com vinho tinto ou com vinho do Porto? Sim e não, não há respostas correctas e com frequência a resposta está mais dependente da forma de cocção que do ingrediente em si. Pense, por exemplo, em salmão e em pescada. O primeiro é um peixe gordo que ficará primoroso com muitos vinhos tintos ligeiros, enquanto o segundo é um peixe magro que dificilmente conseguirá possuir estrutura e peso suficientes para sustentar um vinho tinto.

Já o queijo, e ao contrário do que a vox popular impõe, será habitualmente mais bem acompanhado por um vinho branco ou por um vinho da Madeira. Tal como no exemplo do peixe, também aqui a harmonização dependerá do tipo de queijo ser de pasta mais mole ou mais dura, de ser de leite de vaca, ovelha ou cabra. Quanto mais gordo e pastoso for o queijo, tal como a maioria dos queijos mais apreciados em Portugal, mais premente se torna escolher um vinho de acidez elevada e alguma secura. Por isso, para acompanhar o Queijo da Serra, Serpa ou Azeitão a ligação com um vinho branco fresco e relativamente encorpado é tão acertada. Mas a ligação com os vinhos da Madeira das castas Verdelho e Terrantez é ainda mais acertada ao associar acidez, tensão, corpo e secura relativa que casa deliciosamente com a gordura, e peso deste tipo de queijos.

Mas ainda mais importante que o ingrediente principal, ou pelo menos com o mesmo grau de importância, é a forma como este é cozinhado. Imagine salmão cru em sashimi ou o mesmo peixe nas versões grelhado, frito ou assado. As texturas, sabores, pesos e consistências serão tão diferentes que obrigam a vinhos diferentes para suportar cada um dos perfis. A adição de molhos é igualmente decisiva no momento de eleição dos vinhos podendo alterar por completo a lógica do ingrediente.

Talvez por isso seja interessante pensar mais no peso e riqueza ou untuosidade do prato que nos ingredientes individuais. Pense igualmente nas texturas do prato e tente associar ao vinho. Pratos mais intensos e rudes preferem vinhos mais taninosos e intensos, pratos mais suaves e subtis obrigam a vinhos igualmente mais diáfanos e etéreos. A acidez e secura são igualmente essenciais nos princípios de conciliação entre comida e vinho, outorgando quase sempre preferência a vinhos mais tensos no acompanhamento da mesa.

Mas, mais do que uma escolha e seguimento de regras, deve seguir o que a sua intuição determina. Mais do que temer a escolha de vinhos para cada prato, deve aproveitar estes momentos para sua diversão. A alegria de encontrar algo que funciona é sempre superior aos momentos em que a escolhe simplesmente não funcionou. Aprenda a subverter as regras e a criar as suas doutrinas. Sem tabus e sem o peso de seguir regulamentos ultrapassados que condicionam as escolhas. A ligação entre a mesa e o vinho deve ser um momento nobre de prazer e não um momento de tensão. E não se esqueça, em caso de dúvidas existenciais tem sempre a solução mágica dos vinhos espumantes.

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