Fugas - Vinhos

Quinta das Vargellas

Quinta das Vargellas Paulo Ricca

A anatomia do Porto Vintage pelo bisturi da Fladgate

Por Manuel Carvalho

A Fladgate Partnership, dona da Taylor’s ou da Fonseca, faz da produção do Porto Vintage um trabalho de relojoaria onde a ciência e o empirismo se encontram. Um roteiro para se compreender a razão da complexidade e longevidade dos grandes Vintage.

O vinho do Porto Vintage não anda muito longe da definição da Rússia nas palavras de Winston Churchill: “Um quebra-cabeças embrulhado num mistério dentro de um enigma”. A equipa de enologia e de viticultura das empresas que integram a The Fladgate Partnership (Taylor’s, Fonseca e Croft) andam há décadas à procura desses mistérios e por estes dias decidiram desvendar alguns enigmas da mais consagrada categoria do vinho do Porto numa sessão com jornalistas e críticos de vinho. Ninguém estava à espera que o Vintage acabasse a ser explicado através de uma fórmula ou uma equação matemática. Mas perceber o trabalho que combina ciência com a memória de empresas que, como é o caso da Taylor’s, existem há 325 anos, permite-nos chegar mais perto da origem e da razão da complexidade desta categoria de vinhos criados e moldados para durar décadas.

David Guimaraens é o último representante de uma família que faz Porto Vintage há 200 anos — o seu pai, Bruce, é considerado um dos mestres referenciais dessa arte. António Magalhães é um agrónomo formado na Universidade de Trás-os-Montes que se distingue pela sua persistente tentativa de perceber as uvas e as videiras sem abdicar da sabedoria antiga do Douro — na verdade, ele é um viticultor-historiador. A Taylor’s ou a Fonseca são hoje vistas como o último reduto de uma certa tradição, quase conservadora, no sector do vinho do Porto (recusam regar as videiras, só usam clones das suas próprias vinhas, teimam em não produzir vinho do Douro) em grande parte devido à personalidade e ao saber destas duas personagens — claro que as decisões estratégicas cabem à administração, liderada por Adrian Bridge.

Na perspectiva destes técnicos, o Vintage nasce na sequência de um enorme catálogo de possibilidades. Cada Vintage, da Croft, da Fonseca ou da Taylor’s, vem de diferentes vinhas, com diferentes exposições à luz solar, com diferentes altitudes e com diferentes castas dominantes — o Taylor’s de 2011 resulta de uma selecção final de 12 lotes provenientes de diferentes vinhas das quintas de Vargellas, Terra Feita e Junco, estas no vale do rio Pinhão. Se a Touriga Franca (António Magalhães insiste em chamar-lhe Touriga Francesa) é a casta que domina os lotes dos diferentes vintages, a Touriga Nacional é mais influente na Croft do que na Fonseca e a Tinta Barroca mais influente na Fonseca do que na Taylor’s.

Neste puzzle intrincado, no qual a exposição a norte de uma vinha aumenta a sua temperatura média em dois graus, onde uma vinha mais alta confere acidez e frescura e uma parcela junto ao rio concede corpo e estrutura, o trabalho da equipa técnica aproxima-se da relojoaria. É preciso saber, por exemplo, qual a razão que levou Frank Yeatman a plantar a casta Tinta da Barca em Vargellas em 1927 — a Tinta da Barca resulta do cruzamento feito entre a Mourisco Tinto e a Touriga Nacional por volta de 1880 por um lavrador do Douro, Albino de Sousa Rebello. E é preciso conhecer com detalhe a identidade das mais de 1.2 milhões de videiras das várias quintas da empresa — ao ponto de se saber que 270.608 têm mais de 70 anos ou que 338.745 têm menos de 15 anos. Uma questão importante, porque as vinhas velhas oferecem “complexidade, personalidade e individualidade”, enquanto as vinhas modernas, plantadas depois de 1980, garantem “intensidade de fruta e de cor”.

O clima é fundamental

Claro que todos estes saberes e este potencial de pouco valem quando a natureza não ajuda. O clima no Douro é fundamental. Entre 1970 e 2014, o grupo Fladgate registou três vintages clássicos por década e notou que três em cada quatro vindimas permitem a produção de Vintage (clássico ou single quinta, em tese mais ligeiros e fáceis de beber a médio prazo — 2015 é um desses anos). O que é fundamental para que haja um grande Vintage “acontece nas cinco ou seis semanas antes da vindima”, diz David Guimaraens. Um estudo detalhado dos registos do clima duriense nas últimas décadas prova que “o predicado Vintage” requer que a chuva entre Abril e Outubro seja apenas um terço da média anual, que a temperatura média de Julho seja mais amena e que a precipitação em Setembro seja inferior a 20 milímetros. 

Quando chega à vindima, o destino de um potencial Vintage inicia-se através da separação. Os lotes de diferentes parcelas das diferentes vinhas são vinificados separadamente nos 33 lagares espalhados pelo Douro. Logo aqui pode haver uma vaga suspeita da qualidade, mas nada é certo. Só após o primeiro Inverno se escolhem os melhores lotes para Vintage — os outros envelhecerão em casco. E só no segundo ano se fazem as primeiras reavaliações. Se a equipa de enologia acreditar no potencial dessa vindima, lá para Abril ou Maio fazem-se os lotes finais e procede-se à sua avaliação. E faz-se o anúncio: Vintage clássico, Vintage single quinta — o ano não vintage dispensa apresentações.

A Fladgate Partnership tem surpreendido os apreciadores do vinho do Porto com lançamento de grandes colheitas (vinhos que envelhecem em casco, ao contrário dos vintage que crescem na garrafa), com destaque para o Scion e vinhos com 50 anos de idade. Mas, bem lá no fundo, a sua equipa de enologia, a de viticultura e a sua administração continuam a respirar Vintage por todos os poros. Se não fosse assim, dificilmente marcas como a Taylor’s ou a Fonseca estariam na vanguarda da qualidade dos Porto Vintage e, por arrastamento, no pelotão da frente das grandes companhias mundiais do vinho.   

 

 

 

 

--%>