Há um vinho no feminino? Ou, por outras palavras, as criações enológicas das mulheres têm alguma coisa em especial? A pergunta daria lugar a um congresso de muitos dias e não levaria a lado nenhum. Porque a questão que realmente interessa é outra: em Portugal há mulheres capazes de assinar vinhos de classe mundial? Há sim senhor, e quando duas enólogas como Sandra Tavares e Susana Esteban se juntam, a prova fica mais do que certificada.
O Crochet que fazem no Douro desde 2011 sempre foi um belo vinho e este ano a dupla alargou a experiência ao Alentejo, onde em 2014 foi pela primeira vez criado o Tricot. Pois, sem complexos feministas, duas mulheres fazem um Tricot e um Crochet que valem principalmente por nos exporem uma interpretação muito interessante e rica das duas regiões.
Sandra e Susana foram pioneiras no Douro que em 1990 se dedicou de corpo e alma aos vinhos tranquilos. “Nessa altura éramos as únicas raparigas num mundo de homens”, recorda Susana. Ficaram amigas e assim continuaram quando Susana decidiu rumar ao Alentejo. Na cabeça de ambas foi entretanto evoluindo uma ideia: a de fazerem um vinho juntas. Um vinho no feminino, o que não quer necessariamente dizer um vinho feminino. Até porque o Douro, e ainda mais na vindima de 2011, nem sempre se presta a essa feição.
Na vindima de 2014, podemos comparar os vinhos que as duas enólogas fizeram nas duas regiões — como é natural, Sandra acompanha mais o Douro e Susana o Alentejo, embora a vinificação seja partilhada. Metade das uvas do novo Tricot (91 pontos/29,75 euros) vêm de uma vinha velha da serra São Mamede e a outra metade resulta de um lote Touriga Nacional. É um vinho cheio de subtilezas. Fruta preta, arbustos do monte, ligeiro especiado, num conjunto delicado e atraente, com taninos firmes mas suaves na boca, um leve toque balsâmico da madeira e uma frescura pronunciada que ampara um final de boca longo e delicioso.
Já o Crochet (90 pontos/31 euros) é um vinho com mais arestas, com outra austeridade. Feito a partir das castas Touriga Franca e Touriga Nacional, mostra no nariz fruta vermelha madura, toques florais, notas de cedro, num conjunto com uma extraordinária limpidez e definição. O que impressiona é o seu balanço. Pressente-se doçura, logo temperada numa estrutura tânica firme, e mostra um magnífico final de acidez e especiaria, que lhe conferem uma identidade única e uma magnífica profundidade. Mais “masculino”, opulento e guloso o Crochet, mais fino e elegante o Tricot, estes dois lavores enológicos são bem a prova do talento das suas criadoras.