Fugas - Vinhos

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Quando o moscatel assume aromas de irreverência

Para começar, escolheu um lote de moscatel da vindima de 2005, sabendo que “tem de se ter um vinho já com alguns anos de envelhecimento para se evitar a intensidade do carácter frutado que os moscatéis jovens apresentam”. Feita a escolha do lote, o vinho foi sujeito a um processo de extracção do álcool, passando por uma máquina australiana que faz o milagre de destilar o vinho em vácuo e a baixa temperatura.

Como consequência, o vinho passou de 18.5% de teor alcoólico para a casa dos 5.5%. Depois, o vinho foi refermentado em cuba fechada - ou seja, através do método Charmat que, ao contrário do método tradicional, ou champanhês, não cria com a mesma intensidade as famosas borbulhas do espumante com uma segunda fermentação em garrafa. No final, o Alambre Ice apresenta um muito razoável teor alcoólico (8.5% de volume), embora apresente elevados teores de açúcar.

O resultado é, no mínimo, interessante e original. Que para lá do prazer que proporciona é um bom sintoma do potencial para a modernidade de uma casta tradicional. “É uma ousadia que nos parece muito bem”, até porque “mesmo sendo um produto de nicho faz com que a região seja capaz de despertar mais interesse”, diz Henrique Soares. Gordo e viscoso ao ponto de não permitir que as bolhas sejam visíveis, o Alambre é intenso, muito aromático, apresenta uma acidez retemperadora e na boca deixa manifestar as sensações crocantes comuns aos espumantes. É por isso um vinho que dá muito prazer beber, principalmente à sobremesa. Desde que seja servido bastante frio – na casa dos seis graus. Porque é a essa temperatura que o Alambre melhor exibe a sua fineza, defendendo o conjunto do elevado teor de açúcar que é característico dos moscatéis.

Nesta primeira experiência, a José Maria da Fonseca vinificou apenas 578 litros deste Alambre, que é vendido em garrafas de meio litro. Mas, se o mercado acolher bem a novidade, o potencial da casa para repetir a façanha é enorme – os seus stocks são gigantescos. Quer isto dizer que o velho e nobre moscatel vai sofrer uma ameaça à sua hegemonia regional? Longe disso. Mas, como aconteceu com, por exemplo, os Porto Pink ou com os Porto Tónico, um pouco de ousadia e de modernidade só fica bem a um vinho com as marcas da tradição.

Se a imagem nacional e externa da Península de Setúbal ainda se alicerça na grandeza dos seus moscatéis, o mundo do vinho está a mudar. Claro que os grandes vinhos de Venâncio da Costa Lima, de Horácio Simões ou da José Maria da Fonseca (o seu 1947 alcançou 100 pontos na The Wine Advocate de Robert Parker) continuarão a dar sentido à expressão do jornalista Mark Squires, segundo o qual os moscatéis de Setúbal são “os melhores vinhos que ainda desconhecemos”. Mas a tendência da procura para vinhos menos alcoólicos e com menos teor de açúcar coloca desafios à região que tornam mais inteligente a procura de novas interpretações com base nas duas versões da moscatel de Setúbal ou dos próprios generosos.

Actualmente, os moscatéis representam cerca de 14% do valor e 7% do volume dos vinhos comercializados pelos produtores da Península de Setúbal – o que contrasta de forma clara com os 75% do valor que o Porto representa no conjunto dos vinhos do Douro. Mas, neste século, quer os generosos, quer os vinhos tranquilos da Península têm registado fortes crescimentos – a certificação de vinhos tranquilos duplicou. O recurso crescente aos moscatéis para fazer brancos ou rosés com aromas originais e uma secura que por vezes chega a ser pungente é uma das fórmulas que os produtores têm seguido para expandir o seu potencial. Mas haverá muitas outras. Com a sua irreverência, Domingos Soares Franco abriu mais uma porta para a descoberta de novos caminhos. Esperam-se resultados e, ainda mais, novas ousadias.

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